O frade dominicano e antigo Mestre da Ordem dos Pregadores, Padre Timothy Peter Joseph Radcliffe, guiou as meditações para os participantes na Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, que começa nesta quarta-feira, 4 de outubro, centrada no tema “Em lar em Deus e Deus em lar em nós”.
Meditação n.º 1
“Esperar contra toda esperança”
1° de outubro de 2023
Quando o Santo Padre me pediu para pregar este retiro, senti-me muito honrado, mas também nervoso. Estou profundamente consciente das minhas limitações pessoais. Sou velho – branco – ocidental – e um homem! Não sei o que é pior! Todos estes aspetos da minha identidade limitam a minha compreensão. Por isso, peço-vos perdão pela insuficiência das minhas palavras.
Somos todos radicalmente incompletos e precisamos uns dos outros. Karl Barth, o grande teólogo protestante dos católicos, escreveu “e/e”. Por exemplo, Escritura e tradição, fé e obras. Diz-se que lhe chamou “o maldito ‘e’ católico”, “das verdammte katholische ‘Und’”. Por isso, rezo para que, quando nos ouvirmos uns aos outros nas próximas semanas e discordarmos, possamos frequentemente dizer “Sim, e…” em vez de “Não”! É este o caminho sinodal. Claro que, por vezes, o “Não” também é necessário!
Na segunda leitura da Missa de hoje, São Paulo diz aos Filipenses: “completai a minha felicidade, deixando-vos guiar pelos mesmos propósitos e pelo mesmo amor, em harmonia buscando a unidade” (Filipenses 2,2). Estamos aqui juntos porque não estamos unidos no coração e na mente. A grande maioria dos que participaram no processo sinodal ficou surpreendida com a felicidade. Para muitos, é a primeira vez que a Igreja os convida a falar da sua fé e da sua esperança. Mas alguns têm medo desta viagem e do que nos espera. Alguns esperam que a Igreja mude drasticamente, que tomemos decisões radicais, por exemplo, sobre o papel das mulheres na Igreja. Outros têm medo precisamente dessas mudanças e receiam que elas apenas conduzam à divisão, ou mesmo ao cisma. Alguns de vós preferiam mesmo não estar aqui. Um bispo disse-me que rezou para não ser escolhido para vir aqui. A sua oração foi atendida. Poderíeis ser como o filho do Evangelho de hoje, que no início não queria ir para a vinha, mas depois vai!
Nos momentos fundamentais, nos Evangelhos, ouvimos sempre estas palavras: “não tenhais medo”. São João diz-nos que “o amor perfeito lança fora o medo”. Comecemos, então, por rezar para que o Senhor liberte os nossos corações do medo. Para alguns é o medo da mudança, para outros é o medo de que nada mude. “Mas a única coisa que temos a temer é o próprio medo” (1).
É claro que todos nós temos medos, mas São Tomás de Aquino ensinou-nos que a coragem é recusar ser escravizado pelo medo. Podemos sempre ser sensíveis aos medos dos outros, sobretudo daqueles de quem discordamos! “Como Abraão, partimos sem saber para onde vamos” (cf. Hebreus 11,8). Mas se libertarmos o nosso coração do medo, o caminho será muito melhor do que podemos imaginar.
A meditação sobre a Transfiguração guiar-nos-á neste retiro. Este é o retiro que Jesus dá aos seus discípulos mais próximos antes de se aventurarem no primeiro sínodo da vida da Igreja, quando caminham juntos (syn-hodos) em direção a Jerusalém. Esse retiro era necessário porque eles tinham medo da viagem que tinham de fazer juntos. Até então, tinham percorrido todo o norte de Israel. Mas em Cesareia de Filipe, Pedro confessou que Jesus é o Cristo. Depois Jesus convidou-os a irem com ele para Jerusalém, onde irá sofrer, morrer e ressuscitará dos mortos. Eles não conseguem aceitar o convite. Pedro tenta impedi-los. Jesus chama-lhe “Satanás”, “inimigo”. A pequena comunidade fica paralisada. Então Jesus leva-a para a montanha. Escutemos o relato de São Marcos sobre o que aconteceu.
“Seis dias depois, Jesus levou consigo Pedro, Tiago e João e os fez subir a um lugar retirado, no alto de uma montanha, a sós. Lá, ele foi transfigurado diante deles. Sua roupa ficou muito brilhante, tão branca como nenhuma lavadeira na terra conseguiria torná-la assim. Apareceram-lhes Elias e Moisés, conversando com Jesus. Pedro então tomou a palavra e disse a Jesus: “Rabi, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Na realidade, não sabia o que devia falar, pois eles estavam tomados de medo. Desceu, então, uma nuvem, cobrindo-os com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz: “Este é o meu Filho amado. Escutai-o!” E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém: só Jesus estava com eles” (Marco 9, 2-8).
Esse retiro lhes dá a coragem e a esperança para partir. Nem sempre corre tudo bem. Já no início, eles não podem libertar a criança do espírito maligno. Eles discutem sobre quem é o maior. Eles entendem mal o Senhor. Mas estão a caminho com uma esperança frágil.
Assim, também nós nos preparamos para o Sínodo, fazendo um retiro onde, como os discípulos, aprendemos a escutar o Senhor. Quando nos pusermos a caminho, daqui a três dias, seremos muitas vezes como aqueles discípulos, e entender-nos-emos mal uns aos outros e até discutiremos. Mas o Senhor guiar-nos-á para irmos em frente, para a morte e ressurreição da Igreja. Peçamos também ao Senhor que nos dê esperança: a esperança de que este Sínodo conduza a uma renovação da Igreja e não à divisão; a esperança de que nos aproximemos uns dos outros como irmãos e irmãs. Esta é a nossa esperança não só para a Igreja Católica, mas também para todos os nossos irmãos e irmãs batizados. Fala-se de um “inverno ecuménico”. Nós esperamos uma primavera ecuménica.
Também nos unimos na esperança pela humanidade. O porvir parece sombrio. A catástrofe ecológica ameaça arruinar a nossa lar. Este verão, os incêndios e as inundações devoraram o mundo. Pequenas ilhas estão a começar a desaparecer debaixo do mar. Milhões de pessoas estão nas ruas, fugindo da pobreza e da violência. Centenas de pessoas afogaram-se no Mediterrâneo, não muito distante daqui. Muitos pais recusam-se a dar à luz crianças num mundo que parece condenado. Na China, os jovens usam camisetas onde se lê “somos a última geração”. Juntemo-nos na esperança pela humanidade, especialmente na esperança pelos jovens.
Não sei quantos pais estão presentes no Sínodo, mas agradeço-vos por se preocuparem com o nosso porvir. Depois de um período difícil no Sudão do Sul, na fronteira com o Congo, voei de volta para a Grã-Bretanha, sentado ao lado de uma criança que gritou sem parar durante oito horas. Tenho vergonha de admitir que tive pensamentos assassinos! Mas não há ministério sacerdotal mais maravilhoso do que educar crianças e tentar abrir as suas mentes e corações à promessa da vida. Os pais e os professores são ministros da esperança.
Por isso, reunimo-nos na esperança pela Igreja e pela humanidade. Mas aqui está a dificuldade: temos esperanças contraditórias! Como podemos então esperar juntos? Nisto somos como os discípulos. A mãe de Tiago e de João esperava que os seus filhos se sentassem à esquerda e à direita do Senhor na grandeza, ocupando assim o lugar de Pedro; há rivalidades mesmo no círculo íntimo dos amigos de Jesus. Judas esperava provavelmente uma rebelião que expulsasse os romanos. Alguns deles talvez esperassem simplesmente não ser mortos. Mas continuaram a caminhar juntos. Que esperança partilhada podemos ter?
Na Última Ceia, receberam uma esperança que ultrapassa tudo o que podiam imaginar: o corpo de Cristo e o seu sangue, a nova aliança, a vida eterna. À luz desta esperança eucarística, todas as suas esperanças contrastantes devem ter parecido nulas, exceto a de Judas, que desesperava. É o que São Paulo chama “esperar contra toda esperança” (cf. Rm 4, 18), a esperança que ultrapassa todas as nossas esperanças.
Também nós estamos reunidos como os discípulos na Última Ceia, não como uma câmara de debate político que compete para adquirir. A nossa esperança é eucarística. Tive a minha primeira experiência do que isto significa em 1993, no Ruanda, quando os problemas estavam apenas a começar. Tínhamos planeado visitar as nossas irmãs Dominicanas no norte, mas o embaixador belga disse-nos para ficarmos em lar. O país estava em chamas. Mas eu era jovem e insensato. Agora sou velho e parvo! Vimos coisas terríveis nesse dia: uma enfermaria de hospital cheia de crianças pequenas que tinham perdido membros devido a minas e bombas. Uma criança tinha perdido as duas pernas, um braço e um olho. O pai estava sentado ao lado dele e chorava. Fui para o mato chorar, acompanhado por duas crianças, ambas a saltar numa só perna.
Fomos ter com as nossas freiras, mas o que é que eu podia dizer? Perante uma violência tão sem sentido, não há palavras. Então lembrei-me das palavras do Senhor: “Fazei isto em memória de mim”. É-nos confiado algo para fazer. Durante a Última Ceia, parecia não haver porvir. Não havia nada para além de fracasso, sofrimento e morte. E nesse momento mais sombrio, Jesus fez o gesto mais esperançoso da história do mundo: “Isto é o meu corpo, oferecido em sacrifício por vós. Este é o meu sangue, derramado por vós”. Esta é a esperança que nos chama para além de qualquer divisão.
Um dos meus irmãos, no leste da Ucrânia, foi rezar a missa por umas irmãs que estavam a mudar de lar. Estava tudo empacotado. A única coisa que podiam oferecer como patena era um prato de plástico vermelho. Escreveu: “Foi assim que Deus nos mostrou que está connosco. ‘Estais sentados numa cave, entre a humidade e o bolor, mas eu estou convosco – no prato de plástico vermelho duma criança e não numa patena dourada’”. Esta é a esperança eucarística do atual caminho sinodal. O Senhor está connosco.”
A esperança da Eucaristia tem a ver com o que está para além da nossa imaginação, o livro do Apocalipse: “Depois disso, vi uma multidão imensa, que ninguém podia contar, gente de todas as nações, tribos, povos e línguas. Estavam de pé diante do trono e do Cordeiro; vestiam túnicas brancas e traziam palmas na mão. E proclamavam com voz forte: “A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro” (Apocalipse 7,9s). É esta a esperança que os discípulos vislumbraram na montanha, no Senhor transfigurado. Faz com que o conflito entre as nossas esperanças pareça sem importância, quase absurdo. Se estamos realmente a caminho do Reino, é realmente relevante alinhar-se com os chamados tradicionalistas ou progressistas? Até as diferenças entre Dominicanos e Jesuítas se tornam insignificantes! Então escutemo-lo, desçamos da montanha e continuemos a caminhar com confiança. As maiores dádivas virão daqueles de quem discordamos, se tivermos a coragem de os ouvir.
No decorrer do nosso caminho sinodal, questionar-nos-emos talvez se estamos a concluir alguma coisa. Os meios de comunicação decidirão provavelmente que se tratou apenas duma perda de tempo, apenas de palavras. Irão ver se estão a ser tomadas decisões corajosas sobre quatro ou cinco questões importantes. Mas os discípulos daquele primeiro sínodo, caminhando em direção a Jerusalém, pareciam não concluir nada. Até tentaram impedir que o cego Bartimeu fosse curado. Pareciam inúteis. Quando as grandes multidões famintas se reúnem à volta de Jesus, os discípulos perguntam ao Senhor: “De onde conseguir, aqui em lugar deserto, pão para saciar tanta gente?” Jesus pede-lhes o que têm, apenas sete pães e alguns peixes (cf. Mc 8, 1-10). É mais do que suficiente. Se, neste Sínodo, dermos generosamente o que temos, será mais do que suficiente. O Senhor da messe proverá.
Ao lado do nosso convento em Bagdade há um lar para crianças abandonadas de todas as religiões, dirigido pelas irmãs da Madre Teresa. Nunca esquecerei a pequena Nura, com cerca de oito anos, nascida sem braços nem pernas, que costumava alimentar as crianças mais pequenas com uma colher que segurava com a boca. Podemos questionar-nos que significado têm os pequenos atos de bondade numa zona de guerra. Será que fazem alguma diferença? Não será simplesmente como colocar curativos num corpo em decomposição? Fazemos pequenos atos e deixamos que o Senhor da messe lhes dê o fruto que ele deseja. Hoje estamos aqui reunidos na festa de Santa Teresa de Lisieux. Nascida há 150 anos, ela convida-nos a seguir o seu “pequeno caminho” que conduz ao Reino. Ela dizia: “Lembrai-vos de que nada é trivial aos olhos de Deus”.
Em Auschwitz, o judeu italiano Primo Levi recebia todos os dias um pedaço de pão de Lorenzo. Escreveu: “Creio que é a Lorenzo que devo o facto de estar hoje vivo; não tanto pela sua ajuda material, mas por me ter recordado constantemente, com a sua presença, com a sua maneira fácil e simples de ser bom, que existia ainda um mundo justo fora do nosso, algo e alguém ainda puro e inteiro, não corrompido e não selvagem […]; algo muito mal definido, uma possibilidade remota de bem, pela qual ele contava, no entanto, preservar-se […]. Graças a Lorenzo, aconteceu que não me esqueci de que eu próprio era um homem” (2). Aquela pequena porção de pão salvou-lhe a alma.
As últimas palavras de São David, santo padroeiro do País de Gales, foram: “fazei bem as pequenas coisas”. A nossa esperança é que as pequenas coisas que fizermos neste sínodo deem frutos muito para além da nossa imaginação. Naquela última noite, Jesus entregou-se aos discípulos: “Ofereço-vos a mim mesmo”. Durante este Sínodo, partilhemos não só as nossas palavras e convicções, mas também a nós próprios, com generosidade eucarística. Se abrirmos os nossos corações uns aos outros, acontecerão coisas maravilhosas. Os discípulos recolhem todos os pedaços de pão e de peixe que sobraram depois de terem alimentado cinco mil pessoas. Nada se perde.
Um último ponto. Pedro tenta impedir Jesus de ir a Jerusalém, porque isso não faz sentido para ele. É absurdo ir para lá para ser morto. O desespero não é pessimismo, mas o terror de que já nada faz sentido. E a esperança não é otimismo, mas confiança de que tudo o que vivemos, toda a nossa confusão e a nossa dor, serão de alguma forma vistos como tendo sentido. Temos confiança, como diz São Paulo: “Agora, conheço apenas em parte, mas, então, conhecerei completamente, como sou conhecido” (1 Coríntios 13,12).
A violência insensata destrói todo o significado e mata as nossas almas. Quando São Óscar Romero, arcebispo de San Salvador, visitou o local de um massacre perpetrado pelo exército salvadorenho, deparou-se com o corpo de um jovem deitado numa vala: “Era apenas uma criança, no fundo da vala, com o rosto virado para cima. Viam-se os buracos das balas, as nódoas negras deixadas pelos tiros, o sangue seco. Tinha os olhos abertos, como se estivesse a questionar-se porque estava morto e não compreendesse” (3). E, no entanto, foi nesse momento que descobriu o sentido da sua vida e o apelo a abandoná-la. Sim, ele teve medo até ao fim. O seu corpo morto estava ensopado de suor quando olhou para o homem que estava prestes a matá-lo. Mas já não era servo do medo.
Espero que não haja violência neste sínodo! Mas provavelmente, questionar-nos-emos muitas vezes qual é o sentido de tudo isto; porém se O escutarmos e nos escutarmos uns aos outros, acabaremos por compreender o caminho a seguir. Este é o nosso testemunho cristão num mundo que muitas vezes perdeu a fé de que a vida humana tem sentido. Macbeth, de Shakespeare, afirma que a vida não passa de um “conto feito por um idiota, cheio de gritos e fúria, sem significado algum” (4). Mas ao rezarmos e refletirmos juntos sobre as grandes questões que a Igreja e o mundo enfrentam, damos testemunho da nossa esperança no Senhor que dá sentido a cada vida humana.
Cada escola cristã é um testemunho da nossa esperança na “luz que brilha nas trevas, a qual as trevas não conseguiram dominar” (João 1,5). Em Bagdade, os Dominicanos fundaram uma academia com o lema “Aqui nenhuma pergunta é proibida”. No meio duma zona de guerra, a escola testemunha a nossa esperança de que a estupidez da violência não tenha a última palavra. Homs, na Síria, é uma cidade em grande parte destruída pela violência sem sentido. Mas ali, no meio das ruínas, descobrimos uma escola católica. O jesuíta holandês Franz van der Lugt recusou-se a sair, apesar das ameaças de morte. Foi morto a tiros quando estava sentado no jardim. Mas encontrámos um jesuíta egípcio idoso que ainda ensinava. Ele estava a preparar outra geração de crianças para que pudessem continuar a tentar dar sentido às suas vidas. É este o aspeto da esperança.
Assim, irmãos e irmãs, podemos ser divididos por diferentes esperanças. Mas se escutarmos o Senhor e se nos escutarmos uns aos outros, tentando compreender a sua vontade para a Igreja e para o mundo, estaremos unidos numa esperança que transcende as nossas divergências e seremos tocados por aquele que Santo Agostinho definiu como a “beleza tão antiga e tão nova […] Eu provei-te, e agora estou com fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora eu queimo com o desejo da tua paz” (5). No próximo encontro, examinaremos outra maneira em que podemos ser divididos, através da nossa compreensão do tipo de lar que é a Igreja.
Notas:
(1) Franklin D. Roosevelt
(2) Survival in Auschwitz, “The Tablet”, 21 gennaio 2006
(3) Scott Wright Oscar Romero and the Communion of Saints, Orbis New York 2009, p. 37
(4) Macbeth, atto V scena V
(5) Confessioni, lib. VII, lettura del Breviario per la sua festa
Meditação n.º 2
Meditação para o retiro sinodal: “Em lar em Deus e Deus em lar em nós”.
1º de outubro de 2023
Chegamos a este Sínodo com esperanças contraditórias. Mas isso não deve ser um obstáculo intransponível. Estamos unidos na esperança da Eucaristia, uma esperança que abraça e transcende tudo o que desejamos.
Porém, há ainda uma outra fonte de tensão. A nossa conceção da Igreja como lar é por vezes contraditória. Todos os seres vivos precisam de uma lar para se desenvolverem. Os peixes precisam de água e os pássaros precisam de ninhos. Sem uma lar, não podemos viver. As diferentes culturas têm diferentes conceções do que é uma lar. O Instrumentum Laboris diz-nos que “a Ásia ofereceu a imagem da pessoa que descalça os sapatos para atravessar a soleira da porta, como sinal de humildade para estar preparada para achar o outro e Deus; a Oceânia propôs a imagem do barco; a África insistiu na imagem da Igreja como família de Deus, capaz de oferecer pertença e acolhimento a todos os seus membros, em toda a sua variedade” (B 1,2). Mas todas estas imagens mostram que precisamos de um lugar onde possamos ser aceites e, ao mesmo tempo, desafiados. Em lar somos afirmados pelo que somos e convidados a ser mais. O lar é o lugar onde somos conhecidos e amados, onde estamos seguros, mas é também o lugar onde somos desafiados a embarcar na aventura da fé.
Devemos renovar a Igreja como uma lar comum se quisermos falar a um mundo que sofre de uma crise devido à falta de moradia. Estamos consumindo nossa pequena lar planetária. Há mais de 350 milhões de migrantes em movimento, fugindo das guerras e das violências. Milhares de pessoas morrem cruzando os mares tentando achar um lar. Nenhum de nós pode se sentir completamente em lar se eles não se sentirem. Mesmo nos países ricos, milhões de pessoas dormem na rua. Os jovens muitas vezes não podem pagar uma lar. Em todos os lugares há uma terrível falta de lar espiritual. O individualismo impulsionado, a desintegração da família, as desigualdades cada vez mais profundas significam que somos atingidos por um tsunami de solidão. Os suicídios estão em ascensão porque sem um lar, físico e espiritual, não se pode viver. Amar é voltar para lar a alguém.
O que nos ensina esta cena da Transfiguração sobre a nossa lar, tanto na Igreja como no nosso mundo deserdado? Jesus convida seu círculo mais íntimo de amigos a separar-se dele e desfrutar deste momento de intimidade. Eles também estarão com ele no Getsémani. Este é o círculo mais íntimo daqueles com quem Jesus se sente mais confortável. Na montanha, ele lhes concede a visão de sua grandeza. Pedro quer agarrar-se a este momento. “Rabi, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Chegou e quer que este momento íntimo dure.
Mas eles ouvem a voz do Pai. “Escutai-o!”. Devem descer da montanha e caminhar em direção a Jerusalém, sem saber o que os espera. Serão dispersos e enviados aos confins da terra para testemunhar a nossa última morada, o Reino. Vemos, portanto, duas conceções de lar: o círculo íntimo com Jesus na montanha e o apelo à nossa lar definitiva, o Reino, ao qual todos pertenceremos.
Do mesmo modo, diferentes conceções da Igreja como lar dividem-nos hoje em dia. Para alguns, esta é definida pelas suas tradições e devoções antigas, pelas suas estruturas e linguagem herdadas, pela Igreja em que crescemos e que amamos. Ela dá-nos uma clara identidade cristã. Para outros, a Igreja atual não parece ser um lar seguro. É sentida como exclusiva, marginalizando muitas pessoas, as mulheres, os divorciados e os casados novamente. Para alguns, é demasiado ocidental, demasiado eurocêntrica. O Instrumentum Laboris também menciona os gays e as pessoas que vivem em casamentos polígamos. Estas pessoas desejam uma Igreja renovada na qual se sintam plenamente em lar, reconhecidas, afirmadas e seguras.
Para alguns, a ideia de um acolhimento universal, em que todos são aceites independentemente de quem somos, é sentida como destrutiva da identidade da Igreja. Como numa canção inglesa do século XIX, “Se todos são alguém, então ninguém é ninguém” [1]; eles acreditam que a identidade requer fronteiras. Para outros, porém, a abertura está no cerne da identidade da Igreja. O Papa Francisco disse: “A Igreja é chamada a ser a lar do Pai, com as portas sempre abertas… onde há lugar para todos, para cada pessoa com os seus problemas, para ir ao encontro daqueles que sentem necessidade de retomar o seu caminho de fé” [2].
Esta tensão sempre esteve no centro da nossa fé, desde que Abraão deixou Ur. No Antigo Testamento, há duas coisas em perpétua tensão entre si: a ideia da escolha, do povo escolhido de Deus, do povo com quem Deus habita. Trata-se de uma identidade que é protegida. Mas há também o universalismo, a abertura a todas as nações, uma identidade ainda por descobrir.
A identidade cristã é conhecida e desconhecida ao mesmo tempo, dada e a ser procurada. São João diz: “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos! Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é” (1Jo 3,1-2). Sabemos quem somos, mas não sabemos quem seremos.
Para alguns de nós, a identidade cristã é sobretudo dada, a Igreja que conhecemos e amamos. Para outros, a identidade cristã é sempre provisória, a caminho do Reino em que todos os muros cairão. As duas são necessárias! Se apenas insistirmos no facto que a nossa identidade é dada – isso é que significa ser católico – corremos o risco de nos tornarmos uma seita. Se nos limitarmos a sublinhar a aventura em direção a uma identidade ainda por descobrir, arriscamo-nos a tornar-nos um vago movimento cristão. Mas a Igreja é sinal e sacramento da unidade de toda a humanidade em Cristo (LG 1) ao ser ambas as coisas. Nós habitamos na montanha e saboreamos a grandeza agora. Mas caminhamos em direção a Jerusalém, o primeiro sínodo da Igreja.
Como viver esta tensão necessária? Toda a teologia nasce da tensão que dobra o arco para lançar a flecha. Esta tensão está no centro do Evangelho de São João. Deus faz de nós a sua lar: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra; meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada” (14,23). Mas Jesus promete-nos também a nossa lar em Deus: “Na lar de meu Pai há muitas moradas. Não fosse assim, eu vos teria dito. Vou preparar um lugar para vós” (Jo 14,2).
Quando pensamos na Igreja como uma lar, alguns de nós pensam principalmente em Deus que vem à nossa lar, e outros em nós que vamos para lar em Deus. Ambas são verdadeiras. Precisamos de ingressar em sintonia com aqueles que pensam de forma diferente. Nós apreciamos o círculo íntimo na montanha, mas descemos e caminhamos em direção a Jerusalém, errantes e sem lar. “Escutai-o”.
Assim, em primeiro lugar, Deus faz a sua lar connosco. O Verbo faz-se carne num judeu palestiniano do primeiro século, educado nos usos e costumes do seu povo. O Verbo faz-se carne em cada uma das nossas culturas. Nas pinturas italianas da Anunciação, vemos belas casas de mármore, com janelas que dão para oliveiras e jardins de rosas e lírios. Os pintores holandeses e flamengos mostram Maria com um forno quente, bem agasalhada para evitar o frio. Seja qual for a vossa lar, Deus vem habitar nela. Durante trinta anos de silêncio, Deus habitou em Nazaré: um lugar secundário e insignificante. Natanael exclamou com desgosto: “De Nazaré pode sair algo de bom?” (Jo 1,46). Filipe responde-lhe simplesmente: “Vem e vê!”.
Todas as nossas casas são Nazaré, onde Deus habita. São Charles de Foucauld dizia: “Deixai que Nazaré seja o vosso modelo, em toda a sua simplicidade e abertura… A vida de Nazaré pode ser vivida em qualquer lugar. Vivei-a onde for mais útil ao vosso próximo” [3]. Onde quer que estejamos e independentemente do que tenhamos feito, Deus vem achar-nos: “Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, eu entrarei na sua lar e tomaremos a refeição, eu com ele e ele comigo” (Ap 3,20).
Guardemos com afeto, então, os lugares onde encontrámos o Emanuel. “Deus connosco”. Amamos as liturgias onde vislumbrámos a beleza divina, as igrejas da nossa infância, as devoções populares. Eu amo a grande abadia beneditina da minha escola, onde pela primeira vez senti as portas do céu abertas. Cada um de nós tem o seu próprio Monte Tabor, no qual vislumbrou a grandeza. Precisamos disso. Por isso, quando as liturgias são alteradas ou as igrejas demolidas, as pessoas sentem uma grande dor, como se a sua lar na Igreja fosse destruída. Como Pedro, queremos permanecer.
Cada Igreja local é uma lar para Deus. A nossa Mãe Maria apareceu em Inglaterra, em Walsingham, o grande santuário medieval, em Lourdes, em Guadalupe no México, em Częstochowa na Polónia, em La Vang no Vietname e em Donglü na China. Não há competição mariana. Em Inglaterra dizemos: “A boa notícia é que Deus te ama. A má notícia é que ele ama todos os outros também”. Santo Agostinho disse: “Deus ama cada um de nós como se fosse um só” [4]. Na Basílica de Nossa Senhora de África, em Argel, está inscrito: « Priez pour nous et pour les Musulmans », “Rezem por nós e pelos muçulmanos”.
Muitas vezes os sacerdotes consideram o caminho sinodal mais difícil de abraçar. Nós, sacerdotes, cuidamos destes lugares de culto e celebramos as liturgias. Os sacerdotes precisam de um forte sentido de identidade, dum esprit de corps. Mas quem seremos nós nesta Igreja libertada do clericalismo? Como pode o clero abraçar uma identidade que não seja clerical? Este é um grande desafio para uma Igreja renovada. Abracemos sem medo uma nova compreensão fraterna do sacerdócio ministerial! Talvez possamos descobrir como esta perda de identidade é, na verdade, uma parte intrínseca da nossa identidade sacerdotal. É uma vocação que vai para além de qualquer identidade, pois “nem sequer se manifestou o que seremos” (1Jo 3,2).
Deus constrói agora a sua lar em lugares que o mundo despreza. O nosso irmão dominicano Frei Betto descreve como Deus se tornou a sua lar numa prisão no Brasil. Alguns dominicanos foram presos pela sua antítese à ditadura (1964-1985). Betto escreve: “No dia de Natal, festa do regresso de Deus a lar, a felicidade é irreprimível. A Noite de Natal na prisão… Agora toda a prisão canta, como se o nosso canto, feliz e livre, devesse ressoar pelo mundo inteiro. As mulheres cantam na sua secção e nós aplaudimos… Todos aqui sabem que é Natal, que alguém está a renascer. E com o nosso canto, testemunhamos que também nós renascemos para lutar por um mundo sem lágrimas, sem ódio e sem opressão. É impressionante ver estes rostos jovens encostados às grades e a cantar o seu amor. Inesquecível. Não é um espetáculo para os nossos juízes, nem para o ministério público, nem para a polícia que nos prendeu. Para eles, a beleza desta noite seria intolerável. Os torturadores temem um sorriso, mesmo que seja um sorriso fraco”.
É assim que vislumbramos a beleza do Senhor no nosso Monte Tabor, onde, como Pedro, queremos montar as nossas tendas. Ótimo! Mas “escutai-o!”. Desfrutemos desse momento e depois saiamos do monte e caminhemos em direção a Jerusalém. Temos de nos tornar, de certo modo, pessoas sem-abrigo. “As raposas têm tocas e os pássaros do céu têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”. (Lucas 9,58). Caminham em direção a Jerusalém, a cidade santa onde reside o nome de Deus. Mas lá Jesus morre fora dos muros para o bem de todos os que vivem fora dos muros, tal como Deus se revelou ao seu povo no deserto, fora do acampamento. James Alison escreveu: “Deus está no meio de nós como um relegado” [5]. “Por isso também Jesus sofreu do lado de fora da porta, para, com seu sangue, santificar o povo. Vamos, portanto, sair ao seu encontro, fora do acampamento, carregando a sua humilhação” (Hebreus 12,12s).
O Arcebispo Carlos Aspiroz da Costa escreveu à Família Dominicana quando era Mestre: “Fora do acampamento, entre todos os ‘outros’ relegados para um lugar fora do acampamento, é onde encontramos Deus. A itinerância requer um passo fora da instituição, das perceções e das crenças culturalmente condicionadas, porque é ‘fora do campo’ que encontramos um Deus que não pode ser controlado. É ‘fora do campo’ que encontramos o Outro que é diferente e descobrimos quem somos e o que devemos fazer” [6]. É saindo que chegamos a uma lar onde “não há mais judeu ou grego, servo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só, em Cristo Jesus” (Gálatas 3,26).
Na década de 1980, refletindo sobre a resposta da Igreja à AIDS, visitei um hospital em Londres. O médico disse-me que havia um jovem que procurava um padre chamado Timothy. Pela providência de Deus, consegui ungi-lo pouco antes de morrer. Ele pediu para ser enterrado na Catedral de Westminster, o centro do catolicismo na Inglaterra. Ele estava cercado pela gente comum que vinha àquela Missa durante a semana, bem como por pacientes de AIDS, enfermeiras, médicos e amigos gays. Aquele que estivera na periferia, por causa da sua doença, da sua orientação sexual e especialmente porque morrera, estava no centro. Ele estava cercado por aqueles para quem a Igreja era lar e por aqueles que normalmente nunca entrariam numa igreja.
A nossa vida se nutre de tradições e devoções queridas. Se elas se perdem, lamentamos. Mas devemos também recordar todos aqueles que ainda não se sentem em lar na Igreja: as mulheres que não se sentem reconhecidas num patriarcado de velhos homens brancos como eu! Pessoas que sentem que a Igreja é demasiado ocidental, demasiado latina, demasiado colonial. Temos de caminhar em direção a uma Igreja onde elas já não estejam à margem, mas no centro.
Quando Thomas Merton se tornou católico, descobriu “Deus, esse centro que está em todo o lado e cuja circunferência não está em lado nenhum, enquanto me encontra”. Renovar a Igreja é, portanto, como cozer pão. Juntam-se as bordas da massa no centro e espalha-se o centro até às bordas, enchendo-o de oxigénio. Faz-se o pão invertendo a distinção entre as bordas e o centro, fazendo o pão de Deus, cujo centro está em todo o lado e cuja circunferência não está em lado nenhum, encontrando-nos.
Uma última palavra muito breve. Várias vezes, durante a preparação deste Sínodo, foi feita a pergunta: “Mas como é que podemos estar em lar na Igreja com o horrível escândalo dos abusos sexuais?” Para muitos, foi a gota de água que fez transbordar o copo. Fizeram as malas e foram-se embora. Fiz esta pergunta numa reunião de diretores de escolas católicas na Austrália, onde a Igreja foi terrivelmente desfigurada por este escândalo. Como é que eles puderam permanecer? Como puderam estar ainda em lar?
Um deles citou Charles Carretto (1910-1988), um Pequeno irmão de Charles de Foucauld. As palavras de Carretto resumem a ambiguidade da Igreja, minha lar, mas ainda não minha lar, que revela e esconde Deus.
“Quanto devo te criticar, minha Igreja, e, no entanto, quanto te amo! Fizeste-me sofrer mais do que qualquer outra pessoa, e, no entanto, devo-te mais do que qualquer outra pessoa. Gostaria de te ver destruída, e, no entanto, preciso da tua presença. Escandalizaste-me muito, mas só tu me fizeste compreender a tua santidade. … Inúmeras vezes tive vontade de te bater com a porta da minha alma na cara e, no entanto, todas as noites rezei para morrer nos teus braços seguros! Não, não posso livrar-me de ti, porque contigo sou um tudo, embora não completamente. E depois, para onde é que eu iria? Para construir outra igreja? Mas não poderia construir uma sem os mesmos defeitos, pois são os meus defeitos”.
No final do Evangelho de Mateus, Jesus diz: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos”. Se o Senhor permanece, como poderíamos nós partir? Deus colocou-se na nossa lar, com todas as nossas limitações escandalosas, para sempre. Deus permanece na nossa Igreja, mesmo com todas as corrupções e abusos. Devemos, portanto, permanecer. Mas Deus está connosco para nos conduzir aos espaços mais amplos do Reino. Precisamos da Igreja, da nossa lar atual com todas as suas fraquezas, mas também de respirar o oxigénio cheio de Espírito da nossa futura lar sem fronteiras.
[1] W. S. Gilbert, The Gondoliers, 1889
[2] Evangelii Gaudium paragrafo 47.
[3] Cathy Wright LSJ St Charles de Foucauld: His Life and Spirituality, p.111
[4] Confessions. Book 3
[5] Knowing Jesus p.71
[6] Letter to the Order on Itinerancy
[1] W. S. Gilbert, The Gondoliers [I Gondolieri], 1889
[2] Evangelii Gaudium par. 47.
[3] Cathy Wright LSJ, St Charles de Foucauld: His Life and Spirituality [San Charles de Foucauld: La sua vita e la sua spiritualità], p. 111
[4] Confessioni. Libro 3
[5] Knowing Jesus [Conoscere Gesù] p.71
[6] Letter to the Order on Itinerancy [Lettera all’Ordine sull’itineranza]
Meditação n.o 3
Amizade
2 de outubro de 2023
Na noite antes de morrer, Jesus ora ao Pai “para que eles sejam um, como nós somos um” (João 17:11). Mas, desde o início, em quase todos os documentos do Novo Testamento vemos os discípulos que estão divididos, brigam, excomungam uns aos outros. Estamos reunidos neste sínodo porque também nós estamos divididos e esperamos e rezamos pela unidade dos corações e das mentes. Este deve ser o nosso precioso testemunho num mundo dilacerado por conflitos e desigualdades. O Corpo de Cristo deve encarnar aquela paz que Jesus prometeu e que o mundo anseia.
Ontem examinei duas fontes de divisão: as nossas esperanças conflitantes e as nossas diferentes visões da Igreja como uma lar. Mas não é necessário que essas tensões nos afastem: somos portadores de esperança além de toda esperança, e o Senhor nos diz que na espaçosa lar do Reino há “muitas moradas” (João 14:2). Claro que nem todas as esperanças ou opiniões são legítimas. Mas a ortodoxia é espaçosa e a heresia é estreita. O Senhor conduz o seu rebanho para fora do pequeno recinto do curral para as vastas pastagens da nossa fé. Na Páscoa, ele o levará para fora da pequena sala trancada na vastidão ilimitada de Deus, a “abundância de Deus” (1).
Ouçamos juntos então. Mas como? Um bispo alemão estava preocupado com o “tom cáustico” durante os debates sinodais deles. Ele disse que tinha sido “mais uma troca retórica de golpes verbais” do que um debate ordenado (2). Claro, debates racionais ordenados são necessários. Como dominicano, eu nunca poderia negar a importância da razão! Mas se quisermos ir além das nossas diferenças, precisamos doutra coisa. O rebanho confia na voz do Senhor, porque é a dum amigo. Este Sínodo será fecundo se depois conduzir a uma amizade mais profunda com o Senhor e entre nós.
Na noite anterior à sua morte, Jesus dirige-se aos discípulos que estão prestes a traí-lo, negá-lo e abandoná-lo, dizendo: “Eu vos chamo amigos” (João 15:15). Somos abraçados pela amizade salvadora de Deus, que abre as portas das prisões que criamos para nós mesmos. “Deus invisível […] no seu grande amor fala aos homens como amigos” (Concílio Vaticano II, Dei Verbum, n. 2). Ele abriu o caminho para a eterna amizade da Trindade. Esta amizade foi oferecida aos seus discípulos, aos publicanos e às prostitutas, aos doutores da lei e aos estrangeiros. Foi o primeiro saborear do Reino.
Tanto o Antigo Testamento quanto a Grécia e a Roma clássicas consideravam essas amizades impossíveis. A amizade existia apenas entre os bons. A amizade com os ímpios era considerada impossível. Como diz o Salmo 26, “Odeio a aliança dos malvados, não fico no meio dos ímpios” (Salmos 26:5). Os malvados não têm amizades, pois colaboram apenas para atos malignos. Mas o nosso Deus sempre foi propenso a amizades inquietantes. Ele amava Jacó, o trapaceiro, Davi, o assassino e adúltero, e Salomão, o idólatra.
Além disso, a amizade só era possível entre iguais. Mas a graça nos eleva à amizade divina. O aquinate afirma que solus Deus deificat, só Deus pode nos fazer divinos. Hoje é a festa dos Anjos da Guarda, que são um sinal da amizade única que Deus tem com cada um de nós. O Santo Padre na festa dos Anjos da Guarda disse “ninguém anda sozinho e nenhum de nós pode pensar que esteja sozinho” (3). Enquanto estamos a caminho, cada um de nós está envolvido na amizade divina.
Pregar o evangelho nunca é simplesmente comunicar informação. É um ato de amizade. Cem anos atrás, Vincent McNabb, OP, disse: “Ama aqueles por quem tu rezas. Se não o fazes, não rezas. Reza por ti mesmo”. De São Domingos diz-se que era amado por todos porque amava a todos. Santa Catarina de Siena estava rodeada por um círculo de amigos: homens e mulheres, leigos e religiosos. Eles eram conhecidos como os Caterinatos, o povo de Catarina. São Martinho de Porres é frequentemente representado com um gato, um cachorro e um rato comendo do mesmo prato. Uma bela imagem da vida religiosa!
Não havia amizades fáceis entre os homens e mulheres do Antigo Testamento. O Reino irrompeu com Jesus cercado por seus amigos, homens e mulheres. Ainda hoje, muitos duvidam que uma amizade inocente entre homem e mulher seja possível. Os homens temem as acusações; as mulheres temem a violência masculina; os jovens temem o abuso. Devemos incorporar a amizade espaçosa de Deus.
Portanto, pregamos o evangelho através de amizades que transcendem fronteiras. Deus superou a divisão entre Criador e criatura. Que amizades impossíveis podemos fazer? Quando o Beato Pierre Claverie foi ordenado bispo de Orão, na Argélia, em 1981, disse aos seus amigos muçulmanos: “Devo-vos também o que sou hoje. Convosco, aprendendo árabe, aprendi sobretudo a falar e a compreender a linguagem do coração, a linguagem da amizade fraterna, onde raças e religiões entram em comunhão entre si… Porque acredito que esta amizade vem de Deus e leva a Deus” (4). Nota bem: foi a amizade que o tornou o que era!
É por causa da sua amizade que ele foi assassinado por terroristas, juntamente com um jovem amigo muçulmano, Mohammed Bouckichi. Depois da sua beatificação foi encenada uma peça teatral, Pierre et Mohamet. A mãe de Mohamed assistiu à peça sobre a morte do seu filho e beijou o ator que o interpretou.
A boa notícia que os jovens esperam de nós é que Deus vai ao encontro deles em amizade. Aqui se encontra a amizade que eles querem e que estão procurando no Instagram ou no TikTok. Quando eu era adolescente, fiz amizade com sacerdotes católicos. Com eles descobri a felicidade da fé. Infelizmente, a crise dos abusos sexuais tornou essas amizades suspeitas. Mais do que um pecado sexual, é um pecado contra a amizade. O círculo mais profundo no Inferno de Dante foi reservado para aqueles que traem a amizade.
Portanto, a base de tudo o que faremos neste sínodo deve ser as amizades que construímos. Não parece demasiado. Não dará origem a grandes manchetes nas médias. “Eles vieram até Roma para fazer amigos! Que desperdício!”. Mas é através da amizade que fazemos a transição do “eu” para o “nós” (IL A. 1.25). Sem ela não conseguiremos nada. Quando o arcebispo anglicano de Cantuária, Rober Runice, encontrou São João Paulo II, ele ficou desapontado porque parecia que nenhum progresso tinha sido feito em direção à unidade. Mas o Papa lhe disse para ter confiança. “A colegialidade afetiva precede a colegialidade efetiva”.
O Instrumentum laboris fala da solidão de muitos sacerdotes e da sua “necessidade de cuidado, amizade e apoio” (B. 2. 4., b). No coração da vocação sacerdotal está a arte da amizade. Esta é a amizade eterna e igual do nosso Deus Uno e Trino. Então todo o veneno do clericalismo se dissolverá. Mesmo a vocação de ser um genitor pode ser solitária e precisa de amizades que a apoiem.
A amizade é uma tarefa criativa. Em inglês, dizemos que nos caímos apaixonados, mas fazemos amigos. Depois da parábola do Bom Samaritano, Jesus pergunta aos doutores da lei: “Qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” (Lucas 10:36). Ele diz aos seus discípulos que eles devem fazer amigos, referindo-se ao mamon desonesto (Lucas 16:9). No sínodo temos a tarefa criativa de fazer amizades improváveis, especialmente com pessoas com quem discordamos. Se pensais que estou a dizer coisas estúpidas, vinde e fazei amizade comigo!
Poderia parecer terrível! Imaginai que eu rasteje na vossa direção, ferozmente determinado a me tornar vosso amigo. Querereis escapar! Mas o fundamento da amizade é simplesmente estar uns com os outros. É o prazer da presença dos outros. Jesus convida o círculo mais íntimo, Pedro, Tiago e João, a estar com ele na montanha, como estarão com ele no jardim do Getsémani. Após a Ascensão, eles procuram alguém para substituir Judas, alguém que esteve com o Senhor e com eles. Pedro diz que ele deve ser um “que nos acompanharam durante todo o tempo em que o Senhor Jesus viveu no meio de nós, a começar pelo batismo de João até o dia em que foi elevado do meio de nós” (Atos 1:21-22). O paraíso será simplesmente estar com o Senhor. Quatro vezes durante a Eucaristia ouvimos as palavras “O Senhor esteja convosco”. Esta é a amizade divina. A Irmã Wendy Becket descreveu a oração como “ser indefesos na presença do Senhor”. Não há necessidade de dizer mais.
No seu livro sobre a amizade espiritual, Santo Aelredo de Rievaulx, um abade cisterciense do século XII, escreveu: “Aqui estamos, tu e eu, e espero que Cristo seja o terceiro connosco. Ninguém pode nos interromper agora… Então vem, querido amigo, revela o teu coração e o que tu pensas”. Teremos a coragem de dizer o que pensamos?
Nos Capítulos Gerais dominicanos, é claro, discutimos e tomamos decisões. Mas também rezamos e comemos juntos, fazemos caminhadas, bebemos algo e nos divertimos. Fazemos um ao outro um presente do bem mais relevante, o nosso tempo. Construímos uma vida comum. Assim surgem amizades improváveis. Idealmente, deveríamos também fazê-lo durante estas três semanas do sínodo, em vez de tomar caminhos separados no final do dia. Esperamos que isso seja possível durante a próxima sessão deste sínodo.
O amor criativo de Deus nos dá espaço. Herbert McCabe, OP, escreveu: “O poder de Deus é acima de tudo o poder de deixar as coisas acontecerem. ‘Faça-se a luz’ – o poder criativo é apenas aquele poder que, do momento em que resulta no fato de que as coisas são como são, que as pessoas são o que são, não pode interferir com as criaturas. Claro, criar não faz diferença para as coisas, permite que elas sejam elas mesmas. A criação é justa e simplesmente deixar as coisas serem, e o nosso amor é uma imagem fraca disso” (5).
Muitas vezes não são necessárias palavras. Uma jovem argelina chamada Yasmina deixou uma nota perto do local do martírio de Pierre Claverie. Acima escreveu: “esta noite, Pai, eu não tenho palavras. Mas eu tenho lágrimas e esperança” (6).
Se vamos ficar juntos assim, vamos nos ver como se fosse a primeira vez. Quando Jesus janta com o fariseu Simão, uma mulher, provavelmente a meretriz local, entra e, chorando, lava-lhe os pés com as suas lágrimas. Simão fica surpreso. Jesus não vê quem é essa mulher? Mas Jesus responde: “Estás vendo esta mulher? Quando entrei na tua lar, não me ofereceste água para lavar os pés; ela, porém, lavou meus pés com lágrimas e os enxugou com seus cabelos” (Lucas 7:44).
Israel ansiava por ver a face de Deus. Durante séculos cantou “faze brilhar teu rosto e seremos salvos” (Salmos 80, 8). Mas era impossível ver Deus e viver. Israel ansiava pelo insuportável, pela visão do rosto de Deus. Em Jesus este rosto foi revelado. Os pastores puderam vê-lo como uma criança dormindo na manjedoura e viver. A face de Deus tornou-se visível, mas foi Deus quem morreu, fechando os olhos numa cruz.
Na segunda oração eucarística rezamos para que os mortos sejam admitidos à luz do rosto de Deus. A encarnação é a visibilidade de Deus. Um antigo teólogo, provavelmente Santo Agostinho, imaginava um colóquio entre Deus e o bom ladrão que morreu junto com Jesus. Ele diz: “eu não fiz nenhum estudo particular das Escrituras. Fui um ladrão em tempo integral. Mas a certa altura, na minha dor e isolamento, encontrei Jesus a olhar para mim e, no seu olhar, compreendi tudo” (7).
Neste momento entre a primeira e a segunda vinda de Cristo, devemos nós ser aquele rosto um para o outro. Vemos quem é invisível e sorrimos para quem sente vergonha. Um dominicano estadunidense, Brian Pierce, visitou uma exposição de fotos sobre crianças de rua em Lima, no Peru. Sob a foto dum menino havia a legenda: “Saben que existo pero no me ven”. Eles sabem que eu existo, mas não me veem. Eles sabem que eu existo como um problema, como um incômodo, como uma estatística, mas eles não me veem!
Na África do Sul, uma saudação generalizada é “sawabona”, que significa “eu vejo-te”. Milhões de pessoas se sentem invisíveis. Ninguém olha para elas com consideração. Muitas vezes há pessoas que são tentadas a cometer atos de violência simplesmente para que as pessoas as notem! Olhai, eu estou aqui! É melhor ser visto como inimigo do que não ser visto.
Thomas Merton juntou-se à vida religiosa porque queria escapar da maldade do mundo. Mas alguns anos de vida cisterciense abriram seus olhos para a beleza e bondade do povo. Um dia, na rua, ele caiu como um véu de seus olhos. No seu diário, ele escreveu: “Então foi como se de repente eu visse a beleza secreta dos seus corações, a profundidade dos seus corações, onde nem o pecado nem o desejo nem o autoconhecimento podem chegar, o centro do seu ser, a pessoa que todos são aos olhos de Deus. Se eles pudessem se ver como realmente são. Se nós pudéssemos sempre nos ver assim. Não haveria mais guerra, mais ódio, mais ganância” (8).
Nosso mundo tem fome de amizade, mas é subvertido por tendências destrutivas: o crescimento do populismo, onde as pessoas estão unidas por narrativas simplistas, slogans fáceis e cegueira das massas. E há um individualismo agudo, o que significa que tudo o que tenho é a minha história. Terry Eegleton escreveu: “as viagens não são mais comuns, mas feitas sob medida, mais parecidas com pegar carona do que com uma viagem de ônibus. Não são mais produtos em massa, mas na maior parte são tratados por conta própria. O mundo deixou de ser moldado por histórias, o que significa que tu podes constituir a tua vida à medida que avanças” (9). Mas a “minha história” é a nossa história, a história do evangelho, que pode ser contada de maneiras maravilhosamente diferentes.
Uma breve consideração final. C.S. Lewis disse que os amantes olham um para outro enquanto os amigos olham na mesma direção. Eles podem discordar, mas pelo menos partilham algumas das mesmas perguntas. Cito: “Importas-te com a mesma verdade?”. A pessoa que concorda connosco que alguns problemas, pouco considerados por outros, podem ser de grande importância, pode ser nossa amiga. Não precisa necessariamente concordar connosco sobre a resposta (10).
A coisa mais corajosa que podemos fazer neste sínodo é ser sinceros entre nós sobre as nossas dúvidas e perguntas, aquelas às quais não temos respostas claras. Então nos aproximaremos como companheiros de busca, mendigos da verdade. Em Monsenhor Quixote, de Graham Greene, um sacerdote católico espanhol e um prefeito comunista tiram férias juntos. Um dia eles contam as suas dúvidas. O sacerdote diz: “é curioso como partilhar um senso de dúvida pode unir as pessoas talvez até mais do que partilhar uma fé. O crente lutará com outro crente por uma nuance de diferença; aqueles que duvidam lutam apenas consigo mesmos” (11).
No seu colóquio com o rabino Skorka, o Papa Francisco disse: “os grandes guias do povo de Deus foram homens que deixaram espaço para a dúvida, e aqueles que querem guiar o povo de Deus devem deixar espaço para o Senhor: por esta razão ele deve se fazer pequeno, ter a experiência íntima de não saber como agir. Assim, o espaço é feito para Deus e para a sua ação. Assim, fazer-se pequeno, recuar em si mesmo com a dúvida, a experiência interior da escuridão, do não saber o que fazer, tudo isso, em última análise, é muito purificador. Má guia é aquela que é segura de si, obstinada. Uma das características da má guia é que ela é excessivamente normativa por causa da sua autoconfiança” (cfr. On Heaven and Earth, p. 52).
Se não há preocupação comum com a verdade, então qual base há para a amizade? A amizade é difícil na nossa sociedade, em parte porque a sociedade perdeu a fé na verdade, ou então está ligada a verdades fundamentalistas estreitas que não podem ser discutidas. Soljenítsin disse que “uma palavra de verdade pesa mais do que o mundo inteiro” (13). Um dos meus irmãos no ônibus escutou duas mulheres sentadas na frente dele. Uma queixou-se do sofrimento que ela teve de suportar. A outra lhe disse: “Minha querida, deves levá-la com filosofia”. “O que significa filosofia?”. “Significa não pensar sobre isso”.
A amizade prospera quando temos a coragem de compartilhar nossas dúvidas e buscar a verdade juntos. De que adianta conversar com pessoas que já sabem tudo ou estão completamente de acordo? Mas como podemos fazer isso? Esse é o tema da conferência.
Note:
(1) l’uso più antico è riscontrato in Thomas Becon (1512/13-1567)
(2) “The Tablet”, Christa Pontgratz-Lippitt, 20 marzo 2023
(3) Papa Francesco, Meditazione mattutina nella Cappella Sanctae Marthae, 2 ottobre 2014).
(4) Cardinale Murphy O’Connor, A Life poured out, p. VIII
(5) Goog Matters, Darton, Longman and Todd, London, 1987, p. 108
(6) Paul Murray, OP, Scars: Essays, poems and meditations on affliction, Bloomsbury, 2014, p. 47)
(7) citato da Paul Murray, OP, Scars, p. 143.
(8) citato da Willam H. Shannon, Seeds of Peace: Contemplation and non-violence, New York, 1996, p. 63
(9) Terry Eagleton, “What’s Your Story?”, in London Review of Books, February 16, 2023 https://www.lrb.co.uk/the-paper/v45/n04/terry-eagleton/what-s-your-story
(10)p. 66
(11) Monsignor Quixote. New York: Penguin Classics [1982] 2008, pg. 41.
(12) Bergoglio, Jorge Mario and Abraham Skorka. On Heaven and Earth. New York: Image [2010] 2013, p. 52, citato in Marc Bosco, SJ ‘Colouring Catholicism: Greene in the Age of Pope Francis’.
(13) Discorso al conferimento del premio Nobel 1970, “Una parola di verità”
Meditação n.4
Conversa sobre o caminho de Emaús
2 de outubro de 2023
Somos chamados a seguir o caminho sinodal na amizade. Caso contrário, não chegaremos a lugar algum. A amizade com Deus e entre nós está enraizada na felicidade de estarmos juntos, mas precisamos de palavras. Em Cesareia de Filipe a conversa foi interrompida. Jesus chamou Pedro de “Satanás”, inimigo. Na montanha ele ainda não sabe o que dizer, mas os discípulos começam a escutá-lo e assim a conversa pode começar de novo à medida que se dirigem para Jerusalém.
Ao longo do caminho, os discípulos brigam, entendem mal Jesus e, eventualmente, o abandonam. O silêncio retorna. Mas o Senhor ressuscitado aparece e oferece-lhes palavras de cura para serem ditas uns aos outros. Também nós precisamos de palavras de cura que transcendam as fronteiras que nos dividem: as fronteiras ideológicas da direita e da esquerda, as fronteiras culturais que dividem um continente do outro, as tensões que às vezes dividem homens e mulheres. As palavras partilhadas são a força vital de nossa Igreja. Devemos encontrá-las para o bem do nosso mundo, onde a violência é alimentada pela incapacidade da humanidade de escutar. A conversa leva à conversão.
Como as conversas deveriam começar? Em Gênesis, depois da queda, há um silêncio terrível. A comunhão silenciosa do Éden tornou-se o silêncio da vergonha. Adão e Eva estão se escondendo. Como Deus pode superar esse abismo? Deus espera pacientemente que eles se vistam para esconder o seu embaraço. Agora estão prontos para a primeira conversa da Bíblia. O silêncio é quebrado por uma simples pergunta: “Onde você está?”. É um pedido de informação? É um convite para sair para a luz e ser visível diante de Deus.
Talvez esta seja a primeira pergunta com a qual devemos quebrar os silêncios que nos separam. Não: “Por que tens essas opiniões ridículas sobre a liturgia?” ou “Por que és um herege ou um dinossauro patriarcal?” ou “Por que és surdo para mim?”. Mas “Onde estás?”, “Com o que estás preocupado?”. Este sou eu. Deus convida Adão e Eva a saírem do esconderijo e serem vistos. Se também sairmos para a luz e nos deixarmos ver como somos, encontraremos palavras para os outros. Na preparação para este sínodo, foi muitas vezes o clero que estava mais relutante em sair para a luz e compartilhar as suas preocupações e dúvidas. Talvez tenhamos medo de sermos vistos nus. Como podemos encorajar uns aos outros a não temer a nudez?
Depois da ressurreição, o silêncio do túmulo é novamente quebrado por perguntas. No Evangelho de João: “Por que choras?”. Em Lucas: “Por que procuras os vivos entre os mortos?”. Quando os discípulos fogem para Emaús, eles estão cheios de raiva e deceção. As mulheres afirmam ter visto o Senhor, mas são apenas mulheres. Como hoje, às vezes, as mulheres pareciam não contar! Os discípulos estão fugindo da comunidade da Igreja, como muitos hoje. Jesus não lhes bloqueia o caminho e não os condena. Ele pergunta: “Quais são essas conversas que vos fazeis entre vós?”. Quais são as esperanças e deceções que estão mexendo nos vossos corações? Os discípulos falam com raiva. Em grego, significa literalmente: “Quais são essas palavras que vós lançais uns aos outros?”. Então Jesus os convida a compartilhar sua raiva. Eles esperavam que Jesus fosse aquele que redimiria Israel, mas eles estavam errados. Falhou. Então anda com eles e abre-se para a raiva e o medo deles.
O nosso mundo está cheio de raiva. Falamos sobre política da raiva. Um livro recente se chama American Rage. Essa raiva também infecta a nossa Igreja. Uma raiva justificada pelos abusos sexuais de crianças. Raiva da posição das mulheres na Igreja. Raiva daqueles conservadores terríveis ou daqueles liberais horríveis. Como Jesus, tenhamos a coragem de questionar uns aos outros: “Do que tu estás falando? Por que estás com raiva?”. Temos a coragem de ouvir a resposta? Às vezes eu me canso de ouvir toda essa raiva. Não suporto ouvir de novo. Mas devo ouvir, como Jesus faz, caminhando em direção a Emaús.
Muitos esperam que neste sínodo a sua voz seja ouvida. Sentem-se ignorados e sem voz. Têm razão. Mas só teremos voz se ouvirmos primeiro. Deus chama as pessoas pelo nome. Abraão, Moisés, Samuel. Eles respondem com a bela palavra hebraica Hinneni, “Aqui estou”. O fundamento da nossa existência é que Deus se dirige a cada um de nós pelo nome, e nós escutamos. Não o cartesiano “penso logo existo”, mas escuto então existo. Estamos aqui para ouvir o Senhor e os outros. Como dizem, temos dois ouvidos, mas uma só boca! A palavra só vem depois de ouvir.
Nós ouvimos não só o que as pessoas dizem, mas também o que elas tentam dizer. Nós ouvimos as palavras não ditas, as palavras que procuram. Há um ditado siciliano: “A melhor palavra é aquela que não é dita” (1). Escutamos para ver se eles estão certos, se há um grão de verdade, mesmo que o que eles dizem seja errado? Ouçamos com esperança e não com desprezo. No Conselho Geral da Ordem Dominicana tínhamos uma regra. O que os irmãos diziam nunca era um absurdo. Pode ser devido a desinformação, absurdo, até mesmo errado. Mas em algum lugar nas suas palavras erradas há uma verdade que eu preciso ouvir. Sejamos mendigos em busca da verdade. Os primeiros confrades disseram de São Domingos que ele “entendia tudo na humildade da sua inteligência” (2).
Talvez as Ordens religiosas tenham algo a ensinar à Igreja sobre a arte da conversa. São Bento ensina-nos a procurar o consenso, São Domingos a amar o debate, Santa Catarina de Siena a deleitar-se na conversa e Santo Inácio de Loyola a arte do discernimento. São Filippo Neri, o papel duma risada.
Se realmente escutarmos, nossas respostas pré-confecionadas desaparecerão. Ficaremos mudos e sem palavras, como Zacarias antes de começar a cantar. Se não sei como responder à dor ou à perplexidade duma irmã ou dum irmão, devo dirigir-me ao Senhor e pedir-lhe que me dê as palavras. Então a conversa pode começar.
A conversa precisa de um salto imaginativo para a experiência do outro. Ver com os seus olhos e ouvir com os seus ouvidos. Devemos nos colocar na sua pele. De que experiências vêm as suas palavras? Que dor ou esperança trazem consigo? Que caminho estão tomando?
Num Capítulo Geral dominicano houve um acalorado debate sobre a natureza da pregação, um tema que sempre candente para os dominicanos! O documento proposto no Capítulo entendia a pregação como um colóquio: proclamamos a nossa fé entrando em conversa. Mas alguns capitulares não concordavam em absoluto, alegando que isso beirava o relativismo. Eles disseram: “Devemos ter a coragem de pregar a verdade com audácia”. Pouco a pouco, tornou-se evidente que os irmãos que estavam se confrontando estavam falando a partir de experiências muito diferentes.
O documento foi escrito por um irmão que vivia no Paquistão, onde o cristianismo está necessariamente em colóquio constante com o Islão. Na Ásia não há pregação sem colóquio. Os confrades que reagiram fortemente contra o documento vinham principalmente da antiga União Soviética. Para eles, a ideia de um colóquio com aqueles que os colocaram na prisão não fazia sentido. Para superar o desacordo, a argumentação racional era necessária, mas não suficiente. Era necessário imaginar o motivo pelo qual a outra pessoa apoiava o seu próprio ponto de vista. Que experiência a levou a tal ponto de vista? Que feridas ele carrega consigo? Qual é a sua felicidade?
Isso exigia ouvir com toda a própria imaginação. O amor é sempre o triunfo da imaginação, enquanto o ódio é uma falha da imaginação. O ódio é abstrato. O amor é particular. No romance de Graham Greene O poder e a grandeza, o herói, um padre pobre e fraco, diz: “Quando tu vias as rugas nos cantos dos olhos, a forma da boca, o modo como o cabelo crescia, era impossível odiar. O ódio era apenas um fracasso da imaginação”.
Temos de ultrapassar não só as fronteiras da direita e da esquerda, ou as fronteiras culturais, mas também as fronteiras geracionais. Tenho o privilégio de viver com jovens dominicanos cujo caminho de fé é diferente do meu. Muitos religiosos e sacerdotes da minha geração cresceram em famílias muito católicas. A fé permeou profundamente a nossa vida diária. A aventura do Concílio Vaticano II foi achar o mundo secular. Os sacerdotes franceses iam trabalhar nas fábricas. Tirávamos o nosso hábito e mergulhávamos no mundo. Uma freira irritada, vendo-me usando o vestido, explodiu: “Por que ainda usas essas coisas velhas?”.
Hoje, muitos jovens – especialmente no Ocidente, mas cada vez mais em todos os lugares – crescem num mundo secular, agnóstico ou até mesmo ateu. A aventura deles é a descoberta do Evangelho, da Igreja e da tradição. Eles usam o hábito com felicidade. Nossos caminhos são opostos, mas não contraditórios. Como Jesus, eu devo andar com eles e aprender o que anima os seus corações. “Do que falais? Que filmes assistis? De que música gostais?”. Assim nós teremos palavras para os outros.
Devo imaginar como eles veem a mim! Quem sou eu aos seus olhos? Eu estava pedalando por Saigão uma vez com um grupo de jovens estudantes dominicanos vietnamitas. Isso foi muito antes de se tornar normal ver turistas. Virámos a esquina e lá havia um grupo de turistas ocidentais. Eles pareciam tão grandes e gordos e tinham um colorido feio e estranho. Que pessoas estranhas. Então percebi que eu também era assim!
Enquanto os discípulos caminham em direção a Emaús, eles ouvem esse estranho que lhes dá tolos e os contradiz. E ele também está enraivecido! Mas começam a se alegrar com as suas palavras. Os corações deles ardem. Durante o Sínodo podemos aprender o prazer extático da discordância que leva à compreensão? Hugo Rahner, irmão mais novo de Karl (e muito mais fácil de entender!), escreveu um livro sobre o homo ludens, a humanidade lúdica (3). Aprendamos a falar uns com os outros de uma forma lúdica! Como fazem Jesus e a mulher samaritana no poço em João 4.
Na primeira leitura de hoje, sentimos que na plenitude do tempo “as praças da cidade estarão cheias de meninos e meninas a brincar pelas ruas” (Zacarias 8:5). O Evangelho convida-nos a todos a tornar-nos filhos: “Em verdade vos digo, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus” (Mateus 18:3). Nós nos preparamos para o Reino nos tornando brincalhões, como crianças, mas não infantis. Às vezes, na Igreja, somos afligidos por uma seriedade monótona e sem felicidade. Não é de se admirar que as pessoas fiquem entediadas!
Na noite do novo milénio, enquanto eu estava na Costa do Marfim à espera de apanhar um voo para Angola, sentei-me no sombrio com os nossos estudantes dominicanos, a beber uma cerveja juntos e a conversar calmamente sobre o que nos era mais querido. Saboreamos o prazer de ser diferentes, de ter uma imaginação diferente. O prazer da diferença! Tinha medo de perder o avião, mas chegou com um atraso de três dias! A diferença é frutífera, generativa. Cada um de nós é o resultado da maravilhosa diferença entre homens e mulheres. Se fugirmos da diferença, seremos estéreis e sem filhos, nas nossas casas e na nossa Igreja. Mais uma vez, agradeçamos a todos os pais neste sínodo! As famílias podem ensinar muito sobre como lidar com as diferenças. Os pais aprendem a conhecer as crianças que fazem escolhas incompreensíveis e ainda sabem que ainda têm um lar.
Se conseguirmos descobrir o prazer de imaginar por que nossos irmãos e irmãs têm opiniões que consideramos estranhas, então uma nova primavera começará na Igreja. O Espírito Santo nos dará o dom de falar outras línguas.
Vale ressaltar que Jesus não tenta controlar a conversa. Ele pergunta o que eles estão falando; ele vai para onde eles vão, não para onde ele gostaria de ir; ele aceita a hospitalidade deles. Uma conversa verdadeira não pode ser controlada. Segue-se a direção que ela tomar. Não é possível prever para onde nos levará, para Emaús ou Jerusalém. Para onde este sínodo levará a Igreja? Se soubéssemos com antecedência, não faria sentido fazê-lo! Deixamo-nos surpreender!
A conversa real é, portanto, arriscada. Se nos abrirmos para os outros em uma conversa livre, seremos mudados. Toda amizade profunda dá origem a uma dimensão da minha vida e da minha identidade que não existia antes. Eu me torno alguém que nunca fui antes. Cresci numa maravilhosa família católica conservadora. Quando me tornei dominicano, fiz amizade com pessoas que tinham uma história diferente, uma política completamente diferente, que minha família achava perturbadora! Quem era eu, então, quando cheguei a lar para estar com a minha família? Como eu poderia conciliar a pessoa que eu era com eles e o que eu estava me tornando com os dominicanos?
Todos os anos eu conheço novos dominicanos, com diferentes crenças e maneiras de ver o mundo. Se eu me abrir para eles em amizade, quem eu vou me tornar? Mesmo na minha idade avançada, a minha identidade deve permanecer aberta. No romance de Madeleine Thien sobre os imigrantes chineses nos Estados Unidos, Do not say we have nothing, uma das personagens diz: “Nunca tentes ser uma coisa, um ser humano inteiro. Se tantas pessoas te amam, tu podes honestamente ser uma só coisa?” (4). Se nos abrirmos a múltiplas amizades, não teremos uma identidade clara e bem definida. Se nos abrirmos uns aos outros neste sínodo, todos seremos transformados. Será uma pequena morte e ressurreição.
Um mestre dos noviços dominicano filipino tinha um aviso na sua porta: “Perdoai-me. Eu sou um trabalho em andamento”. A coerência está no porvir, no Reino. Então o lobo e o cordeiro dentro de cada um de nós estarão em paz entre si. Se agora temos identidades fechadas, fixas, gravadas em pedra, nunca experimentaremos a aventura de novas amizades que revelarão novas dimensões de quem somos. Não estaremos abertos à amizade espaçosa do Senhor.
Quando chegam a Emaús, o voo de Jerusalém termina. Jesus parece querer ir mais distante, mas com esplêndida ironia convidam o Senhor do sábado a parar com eles. “Fica connosco, pois já é tarde e a noite vem chegando!” (Lucas 24:29). Jesus aceita a hospitalidade deles, assim como os três estrangeiros em Gênesis 18 aceitaram a hospitalidade de Abraão. Deus é nosso convidado. Nós também devemos ter a humildade de sermos convidados. A apresentação alemã dizia que devemos abandonar “a posição confortável daqueles que dão hospitalidade para nos deixarmos acolher na existência daqueles que são nossos companheiros na jornada da humanidade”.
Marie-Dominique Chenu OP, o avô do Concílio Vaticano II, saía quase todas as noites, mesmo aos oitenta anos. Ele saía para ouvir líderes sindicais, académicos, artistas, as famílias e para aceitar a sua hospitalidade. À noite nos encontrávamos para uma cerveja e ele perguntava: “O que aprendeste hoje? Em que mesa te sentaste? Que presentes recebeste?”. A Igreja em cada continente tem dons a oferecer à Igreja universal. Por exemplo, os meus irmãos da América Latina me ensinaram a abrir os ouvidos às palavras dos pobres, especialmente o nosso amado irmão Gustavo Gutiérrez. Vamos ouvi-las nos nossos debates este mês? O que vamos aprender com os nossos irmãos e irmãs na Ásia e na África?
“Depois que se sentou à mesa com eles, tomou o pão, pronunciou a bênção, partiu-o e deu a eles. Neste momento, seus olhos se abriram, e eles o reconheceram. Ele, porém, desapareceu da vista deles” (Lucas 24,30-31). Eles abriram os olhos. A primeira vez que ouvimos isso foi quando Adão e Eva tiraram o fruto da árvore da vida e os seus olhos se abriram e perceberam que estavam nus. É por isso que alguns comentaristas antigos viram discípulos como Cléofas e a sua esposa, um casal, como novos Adão e Eva. Agora eles comem o pão da vida.
Uma última breve reflexão: Quando Jesus desaparece da sua vista, os discípulos dizem: “Não estava ardendo o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras”. (Lucas 24:32) É como se eles percebessem somente depois da felicidade que sentiram andando com o Senhor. São John Henry Newman disse que somente quando olhamos para trás, para a nossa vida, percebemos como Deus sempre esteve connosco. Rezo para que esta seja também a nossa experiência.
Durante este sínodo, seremos como aqueles discípulos. Às vezes não estaremos cientes da graça do Senhor que opera em nós e poderemos até pensar que seja apenas uma perda de tempo. Mas peço a Deus que mais tarde, olhando para trás, vamos perceber que Deus estava connosco o tempo todo e que nosso coração ardia dentro de nós.
Notas:
(1) “La megliu parola è chiddra chi nun si dici”.
(2) ‘humili cordis intelligentia’,
(3) Man at Play or Did you ever practice eutrapelia? Tradotto da Brian Battershaw e Edward Quinn, Compass Books, London 1965
(4) Granta, London, 2016, p.457