“No meio de nossa euforia tecnológica e administrativa, nos encontramos social e tecnicamente despreparados para a difusão do contágio: custamos para reconhecer e admitir o impacto. Agora, estamos ansiosos para impedir sua propagação”, ressalta o organismo vaticano.
Roberta Gisotti/Mariangela Jaguraba – Cidade do Vaticano
A Pontifícia Academia para a Vida divulgou uma nota, nesta segunda-feira (30/03), sobre a emergência do Covid-19, intitulada “Pandemia e fraternidade universal”.
“A pandemia do Covid-19 nos coloca numa situação de dificuldade sem precedentes, dramática e global: a sua força de desestabilização do nosso projeto de vida cresce a cada dia. Estamos vivendo um paradoxo que nunca teríamos imaginado: para sobreviver à doença, devemos nos isolar uns dos outros, e vivendo assim, percebemos que viver com os outros é essencial para a nossa vida”, ressalta o texto do organismo vaticano.
“No meio de nossa euforia tecnológica e administrativa, nos encontramos social e tecnicamente despreparados para a difusão do contágio: custamos para reconhecer e admitir o impacto. E agora, estamos ansiosos para impedir sua propagação. Mas, tanto despreparo, para não dizer uma certa resistência, encontramos em relação ao reconhecimento de nossa vulnerabilidade física, cultural e política diante do fenômeno, se considerarmos a desestabilização existencial que está causando. Essa desestabilização está além do alcance da ciência e da técnica dos aparelhos terapêuticos. Seria injusto, e errado, cobrar os cientistas e técnicos dessa responsabilidade. Ao mesmo tempo, é certamente verdade que uma maior profundidade de visão e uma maior responsabilidade na contribuição reflexiva sobre o significado e os valores do humanismo, têm a mesma urgência que a busca por medicamentos e vacinas.”
“O exercício dessa profundidade e responsabilidade”, ressalta a Pontifícia Academia para a Vida, “cria um contexto de coesão e unidade, de aliança e fraternidade, por causa de nossa humanidade partilhada, que, distante de mortificar a contribuição de homens e mulheres da ciência e do governo, apoia e anima muito a sua tarefa. A sua dedicação, que já merece a gratidão de todos, deve certamente ser fortalecida e valorizada”.
Nesse contexto, a Pontifícia Academia para a Vida, que por seu mandato institucional promove e apoia a aliança entre ciência e ética na busca do melhor humanismo possível, deseja ajudar com sua contribuição reflexiva. “O objetivo é colocar alguns elementos peculiares dessa situação dentro de um espírito renovado que deve alimentar a sociabilidade e o cuidado da pessoa. A situação excepcional que hoje desafia a fraternidade da comunidade humana terá que ser transformada em ocasião para que esse espírito humanista informe a cultura institucional no tempo ordinário: dentro dos povos e na harmonia dos laços entre os povos”
Um sistema frágil
“Se pandemia evidencia a precariedade que marca radicalmente a nossa condição humana com uma dureza inesperada”, o organismo vaticano recorda que “em algumas regiões do mundo, a precariedade da existência individual e coletiva é uma experiência diária, devido à pobreza que não permite que todos tenham acesso aos tratamentos disponíveis, ou a alimentos em quantidades suficientes, que, mesmo em todo o mundo, não faltam”. As regiões mais ricas e avançadas “pensavam que não fossem vulneráveis ou que podiam achar uma solução técnica para tudo”. “Devemos reconhecer que não é assim. Hoje, somos até levados a pensar que, junto com os recursos extraordinários de proteção e assistência que o nosso progresso acumula, também existem efeitos colaterais da fragilidade do sistema, sobre os quais ainda não supervisionamos o suficiente”. “Parece traumaticamente evidente que não somos donos do nosso destino”. Estamos todos conectados: “de fato, em nossa exposição à vulnerabilidade, somos mais interdependentes do que em nossos aparelhos de eficiência. Assim, descobrimos que a incolumidade de cada um depende da de todos”.
Limites da ciência
A Pontifícia Academia para a Vida exorta, por um lado, a criticar o atual modelo de desenvolvimento, especialmente “a exploração de áreas florestais até agora intocadas onde residem os microrganismos desconhecidos pelo sistema imunológico humano, com uma rede de conexões e transporte ligeiro e abrangente”, e por outro lado, considerar os limites da ciência e da tecnologia que não dominam os nossos afetos mais queridos e profundos, onde doença e morte não impõem “o abandono de sua justiça e a ruptura de seus laços”. “Os recursos de uma comunidade que se recusa a considerar a vida humana apenas como um fato biológico são um bem precioso, que também acompanha com responsabilidade todas as atividades de cuidado necessárias”.
Dedicação aos outros além da lógica da remuneração
“Nunca como agora a relação de cuidado se apresenta como o paradigma fundamental de nossa convivência humana”, da qual a dedicação dos agentes de saúde são expressão, cujo profissionalismo “se manifeta muito além da lógica dos vínculos contratuais, testemunhando que seu trabalho seja principalmente um âmbito de expressão de significado e valores, e não apenas ‘atos’ ou ‘bens’ a serem trocados por remuneração”. E também as “colaborações entre redes de centros de pesquisa para protocolos experimentais que garantem a segurança e eficiência dos medicamentos”, e também todos os homens e mulheres que “mesmo em situações objetivamente difíceis, continuam fazendo seu trabalho com honestidade e consciência”, incluindo os milhares de voluntários que não deixaram de prestar serviço, dentre eles, as religiosas, os religiosos e os sacerdotes que continuam servindo as pessoas que lhes foram confiadas, mesmo a custo de suas vidas, como já aconteceu com muitos presbíteros contagiados e mortos.
Que a política responda além dos interesses nacionais
A nota da Pontifícia Academia para a Vida há um seguro convite aos responsáveis políticos “para terem uma visão ampla” das relações internacionais, evitando “uma lógica míope e ilusória, aquela que busca dar respostas em termos de ‘interesses nacionais’. Sem uma colaboração efetiva e uma coordenação eficaz, que enfrente, com decisão, as inevitáveis resistências políticas, comerciais, ideológicas e relacionais, não se detém o vírus”. Daí a advertência de não reduzir as escolhas políticas apenas com base em dados científicos, produzindo respostas técnicas e negligenciando o respeito “das diferenças entre culturas, que interpretam saúde, doença, morte e sistemas de assistência, atribuindo significados que em sua diversidade podem constituir um riqueza que não pode ser homologada de acordo com uma única chave interpretativa técnico-científica”.
Anticorpos de solidariedade ao Covid-19
O Covid-19 se derrota com “uma aliança entre ciência e humanismo que devem ser integrados e não separados, ou, pior ainda, opostos. Uma emergência como a do Covid-19 é vencida sobretudo com os anticorpos da solidariedade”. É necessário “combater a tendência de selecionar as vantagens para os privilegiados e a separação dos vulneráveis com base na cidadania, renda, política e idade”. “As condições de emergência em que muitos países estão se encontrando podem forçar os médicos a tomar decisões dramáticas e dilacerantes sobre o racionamento de recursos limitados”. Nesses casos, a decisão nunca pode “basear-se numa diferença de valor da vida humana e na dignidade de cada pessoa, que são sempre iguais e inestimáveis”, mas devem estar relacionadas às “necessidades do paciente” e “à avaliação dos benefícios clínicos que a tratamento pode obter, em termos de prognóstico”.
Os idosos não podem ser discriminados
“Não se pode supor a idade”, reitera a nota, “como critério de escolha único e automático, caso contrário, pode-se adotar uma atitude discriminatória em relação aos idosos e aos mais frágeis”. Por esse motivo, como já é o caso na medicina de catástrofes, “é necessário formular critérios, na medida do possível, partilhados e fundamentados, para evitar arbítrio ou improvisações em situações de emergência”. “De qualquer forma, nunca devemos abandonar a pessoa doente, mesmo quando não há mais tratamentos disponíveis: cuidados paliativos, tratamento da dor e acompanhamento são uma necessidade que nunca deve ser negligenciada”.
Os riscos da epidemia que espalha incertezas
Em termos de saúde pública, a Pontifícia Academia para a Vida espera “uma coordenação global dos sistemas de saúde” e a referência à autoridade que pode considerar as emergências com uma visão geral, tomar decisões e orquestrar a comunicação” para “evitar a desorientação gerada pela tempestade comunicativa que se desencadeia, com a incerteza dos dados e a fragmentação das notícias”.
O poder da oração intercessora
“A proteção dos mais fracos, nesta época de pandemia, também testa a fé evangélica, como sinal da vitória de Jesus ressuscitado. Toda forma de solicitude, toda expressão de benevolência é uma vitória do Ressuscitado. É responsabilidade dos cristãos testemunharem isso. Sempre e para todos”, ressalta a nota da Pontifícia Academia para a Vida. Nesse momento, “não podemos esquecer as outras calamidades que atingem os mais frágeis, como os refugiados e os migrantes ou os povos que continuam sendo atormentados por conflitos, guerra e fome”. “É nesta luz”, explica o texto, “que devemos entender o significado da oração. Como intercessão para cada um e para todos aqueles que se encontram no sofrimento e que Jesus também viveu em solidariedade conosco, e como um momento para aprender Dele o modo de vivê-lo, confiando-se ao Pai”.
A fraternidade expressa pela fé em ajuda a todos
Uma atitude de fé bem expressa nas palavras do bispo de Bérgamo, cidade italiana flagelada pelo Covid-19, é relatada no final da nota. Escreve dom Francesco Beschi: “As nossas orações não são fórmulas mágicas. A fé em Deus não resolve magicamente os nossos problemas, mas nos dá a força interior para exercer esse compromisso que, todos e cada um, de diferentes maneiras, somos chamados a viver, especialmente naqueles que são chamados a conter e vencer esse mal”. “Mesmo aqueles que não compartilham a profissão dessa fé”, conclui a nota da Pontifícia Academia para a Vida, “de qualquer forma podem extrair algo do testemunho dessa fraternidade universal que aponta para a melhor parte da condição humana”.