“A Semana Santa é mais do que memória: é espelho do tempo em que vivemos e profecia do que somos chamados a ser. Nela, contemplamos o coração da vida religiosa consagrada: vigiar com Cristo nas noites do mundo, carregar com Ele as cruzes do povo, esperar com esperança no silêncio do Sábado, e enfim, renascer com a luz da manhã pascal.”
Ir. Veridiana Kiss, ASCJ*
A Semana Santa é, por excelência, um tempo de travessia. Um período marcado por mudanças profundas, desafios e a necessidade de deixar algo para trás a fim de alcançar uma nova realidade. A liturgia nos conduz pelo caminho da entrega, da dor, do silêncio e da vitória que nasce do amor. Para a vida religiosa consagrada, este tempo nos oferece uma chave privilegiada para compreender o momento histórico que vivemos: um tempo de passagem, de purificação e de renovação profunda. Em suma, é um tempo liminar, entre o “já não” e o “ainda não”, onde se amadurece a fé, se purifica o coração e se renova o sentido da missão. “A vida consagrada é um dom precioso para a Igreja e para o mundo. Não devemos deixar que ela se torne uma relíquia do passado, mas sim, uma presença viva e profética” (Papa Francisco, Carta aos Consagrados, 2014).
Tempo de Êxodo com Cristo no Getsêmani
No jardim do Getsêmani, Jesus experimenta a angústia da missão. Ele não foge da dor, mas a enfrenta em oração e obediência ao Pai (cf. Mt 26,36-46). Também a vida consagrada, diante do esfriamento do ardor vocacional, do ciclo de vida avançado das comunidades, da reconfiguração de estruturas que perderam a vitalidade e o frescor original do Espírito e das complexidades emergentes nas diferentes atividades apostólicas, é convidada a permanecer vigilante com o Senhor: “Permanecei aqui e vigiai comigo” (Mt 26,38). Somos chamados a reconhecer nossas noites interiores, nossas fragilidades institucionais e nossos medos diante das incertezas do porvir, que por vezes, nos tornam estéreis, na certeza de que, não estamos sozinhos: “O Espírito vem em socorro de nossa fraqueza” (Rm 8,26).
Tempo de Atravessar o Deserto com Cristo na Cruz
A cruz é o ápice do amor doado até o fim (cf. Jo 19,30). Nela, Jesus não apenas sofre: Ele revela o caminho da entrega fecunda. Para os consagrados e consagradas, a cruz não é escândalo, mas caminho pascal. Assumir a cruz da escuta ativa, da convivência fraterna experienciada na diversidade cultural e geracional, da fidelidade criativa ao carisma, do serviço aos mais necessitados e esquecidos no dom total de si, é também dar a vida, como Ele. “Quem quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mc 8,34). A vida religiosa encontra na cruz o sentido profundo do seu “sim” total: viver não para si, mas para o Reino, na fecundidade que brota do escondimento, como a semente que rasga a terra em silêncio “A cruz do Senhor é a medida do mundo. E a vida consagrada, quando abraça essa cruz com amor, torna-se um sinal claro da lógica do Evangelho” (Papa Francisco, Homilia – Missa da Vida Consagrada, 2/2/2018).
Tempo de Passagem com Cristo no Silêncio do Sábado Santo
O Sábado Santo nos coloca no coração da espera. Parece que tudo está em silêncio. Mas é no silêncio que Deus trabalha. Muitas comunidades consagradas vivem hoje esse tempo: silêncio de vozes jovens, de aplausos fáceis, de estratégias bem-sucedidas. Mas não é tempo de morte. É tempo de gestação. “Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, ficará só; mas, se morrer, produzirá muito fruto” (Jo 12,24). O silêncio de Deus não é ausência, é mistério que prepara a Ressurreição, é uma convocação a escutar os sinais dos tempos com mais profundidade. E, neste tempo, somos chamados a cultivar a esperança teimosa, a fé que confia sem ver, a fidelidade que não depende de aplausos nem resultados visíveis. “O porvir da vida consagrada depende da capacidade de viver este tempo com esperança, sem cair na nostalgia do passado, nem no medo do novo” (Papa Francisco, Encontro com religiosos/as, Santiago – Chile, 2018).
Tempo de Transfiguração com Cristo Ressuscitado
No Domingo da Ressurreição, a vida explode nova. Jesus ressuscita não para voltar ao que era antes, mas para inaugurar um novo modo de estar presente (cf. Jo 20,19-22). Também a vida consagrada é chamada a ressurgir. Não para restaurar formas antigas, mas para deixar-se recriar pelo Espírito: “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5). A travessia nos impulsiona à novidade: ela nos desinstala e nos abre a caminhos missionários inéditos, a um modo renovado de ser comunidade, e a uma relação mais aberta, sensível e ousada com o mundo e com os jovens. A ressurreição nos envia: “Ide e anunciai!” (Mt 28,19). E onde formos, levamos a felicidade pascal de quem sabe: o amor venceu a morte. “O Evangelho é sempre novo. É isso que a vida consagrada deve mostrar: a novidade do Evangelho com ousadia, criatividade e felicidade” (Evangelii Gaudium, n. 11).
Travessia da Luz: Consagrados Sentinelas da Aurora Pascal
“A travessia continua… mas o Ressuscitado caminha conosco”. A Semana Santa é mais do que memória: é espelho do tempo em que vivemos e profecia do que somos chamados a ser. Nela, contemplamos o coração da vida religiosa consagrada: vigiar com Cristo nas noites do mundo, carregar com Ele as cruzes do povo, esperar com esperança no silêncio do Sábado, e enfim, renascer com a luz da manhã pascal. A travessia continua, com seus desertos e surpresas, mas não caminhamos sós. O Senhor ressuscitado vai conosco, aquecendo nosso coração e reabrindo horizontes, como fez no caminho de Emaús. Ele renova em nós a felicidade da vocação e reacende o chamado a sermos sinais vivos de um Reino que não termina no Calvário, mas floresce no jardim da Ressurreição. Que a vivência dos conselhos evangélicos, a comunhão fraterna e a missão apostólica sejam como perfume de vida nova, testemunho de que a vida consagrada é terra fértil para as surpresas de Deus. Como nos recorda o Papa Francisco:“Ela não é sobrevivência, é vida nova. É encontro vivo com o Senhor no seu povo. É chamado à obediência fiel de cada dia e às surpresas inéditas do Espírito. É visão daquilo que importa abraçar para ter a felicidade: Jesus.”
Que sejamos, com Cristo, sentinelas da aurora.
Que nossos pés não temam os desertos,
e nossas mãos carreguem a esperança dos pequenos sinais: inesperados, simples e fiéis,
inteiros em Deus e entregues ao mundo.
Porque Ele vive e com Ele, a vida consagrada renasce, surpreende e floresce.
Que esta Páscoa nos encontre vigilantes, confiantes e renovados.
Cristo vive e caminha conosco!
Referências Bibliográficas:
BÍBLIA DE JERUSALÉM. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008.
CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA. Alegrai-vos. Carta Circular aos consagrados e consagradas do Magistério do Papa Francisco, Roma 2 de fevereiro de 2014.
FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulus, 2013.
FRANCISCO. Encontro com sacerdotes e consagrados. Discurso do Santo Padre, Chile 16 de janeiro de 2018. https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2018/january/documents/papa-francesco_20180116_cile-santiago-religiosi.html
FRANCISCO. Festa da Apresentação do Senhor no Templo. XXII Dia mundial da Vida Consagrada. Homilia da Celebração Eucaristica, Roma 02 de fevereiro de 2018. https://www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2018/documents/papa-francesco_20180202_omelia-vita-consacrata.html
*Ir. Veridiana Kiss, é Apóstola do Sagrado Coração de Jesus, Pesquisadora sobre a Vida Religiosa e Sacerdotal. Administradora, Teóloga, Psicóloga, Mestra e Doutora em Psicologia com especialização em acompanhamento formativo e psico-espiritual à luz da Antropologia da Vocação Cristã pela Pontifícia Universidade Gregoriana – Roma- Itália. E-mail: ascjveridiana@gmail.com