Cardeal Tempesta: O rosto de Cristo na carne dos pobres

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Foi publicada nesta data a Exortação Apostólica do Papa Leão XIV, um tema que estava sendo trabalhando pelo Papa Francisco, eis que temos em mãos esse bonito documento. O primeiro documento do Santo Padre é sobre a doutrina social da igreja.

Cardeal Orani João Tempesta, O. Cist. – Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ

Foi publicada nesta data a Exortação Apostólica do Papa Leão XIV, um tema que estava sendo trabalhando pelo Papa Francisco, eis que temos em mãos esse bonito documento. O primeiro documento do Santo Padre é sobre a doutrina social da igreja.

É com o coração repleto de uma profunda felicidade e gratidão filial que me dirijo a todos. Em tempos de tantas incertezas, em que as sombras da indiferença e do individualismo parecem se alongar sobre o mundo, o Espírito Santo, por meio da voz profética de nosso amado Santo Padre, o Papa Leão XIV, nos oferece um farol de esperança e um caminho seguro: a Exortação Apostólica Dilexi te. Este documento, cujo título é a própria declaração de amor de Cristo à sua Igreja – «Eu te amei» – chega até nós não como um simples tratado sobre a caridade, mas como um convite apaixonado a um encontro transformador, um mergulho profundo no mistério da Encarnação e um apelo urgente à conversão de nosso olhar, de nosso coração e de nossas estruturas eclesiais.

O Papa Leão XIV, com a sabedoria pastoral e a clareza teológica que já marcam os albores de seu abençoado pontificado, não busca inventar uma nova doutrina. Pelo contrário, com a humildade de um verdadeiro mestre, ele retoma o fio de ouro da Tradição bimilenária da Igreja, aprofundando o luminoso legado de seus predecessores – em especial do Papa Francisco, cujo projeto para esta Exortação ele assume como herança – para nos recordar uma verdade que, por ser tão central e incômoda, sempre corremos o risco de esquecer ou de domesticar: o vínculo indissolúvel, essencial e não negociável entre a nossa fé em Jesus Cristo e o amor concreto, eficaz e preferencial pelos pobres. Dilexi te nos impele a superar a tentação de ver os pobres como um “problema social” a ser terceirizado ou como objeto de uma filantropia ocasional. A Exortação nos ensina a reconhecê-los como o que verdadeiramente são no mistério da fé: a “própria carne de Cristo”, um lugar teológico privilegiado, um sacramento vivo de Sua presença sofredora e redentora no mundo.

O Santo Padre, com grande maestria, alicerça toda a sua reflexão na rocha da Palavra de Deus. Ele nos recorda que a opção preferencial pelos pobres não é uma invenção sociológica do século XX ou uma estratégia pastoral moderna, mas uma escolha do próprio Deus, uma “opção teológica” que permeia toda a história da salvação. Desde a sarça ardente, onde a revelação do Nome divino está intrinsecamente ligada à escuta do clamor do povo oprimido no Egito – “Eu bem vi a opressão do meu povo, e ouvi o seu clamor. Desci a fim de o libertar” – a Sagrada Escritura nos revela um Deus cujo coração se inclina de modo especial para os mais frágeis, para a viúva, o órfão e o estrangeiro. Os profetas, como Amós e Isaías, não se cansam de denunciar a tirania social e de advertir que um culto separado da prática da justiça é uma abominação aos olhos do Senhor.

Esta predileção divina atinge seu ápice, sua plenitude insuperável, na pessoa de Jesus de Nazaré. O Papa Leão XIV nos conduz a contemplar como a pobreza de Cristo não foi um mero acidente biográfico ou uma condição sociológica, mas uma escolha teológica radical, um ato de esvaziamento (kénosis) em vista da nossa salvação. São Paulo resume este mistério de forma sublime: “Conheceis bem a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza”. Esta pobreza se manifesta em cada detalhe de sua vida terrena. Desde o nascimento numa manjedoura, pois “não havia lugar para eles na hospedaria”, passando pela oferta dos pobres no Templo, pela vida de mestre itinerante que “não tem onde reclinar a cabeça”, até a morte ignominiosa na cruz, despojado de tudo, Ele se identifica plenamente com os excluídos. Jesus é, por excelência, o Messias pobre que vem anunciar a Boa Nova aos pobres.

É nesta perspectiva cristocêntrica que a Exortação nos convida a superar, de uma vez por todas, a visão da caridade como mera beneficência ou assistencialismo. Ajudar os necessitados não é apenas um ato de bondade humana; é um ato teologal, um encontro com o próprio Senhor. Como nos recorda o Santo Padre com agudeza, as palavras de Jesus, “Pobres, sempre os tereis convosco” e “Sabei que Eu estarei sempre convosco”, iluminam-se mutuamente. O pobre é um sinal visível e concreto da presença permanente de Cristo na história. Assim, a grande cena do Juízo Final deixa de ser uma alegoria distante para se tornar o critério último e definitivo de nossa vida: “Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes”. A caridade não é um dos muitos preceitos; é a chave que nos abre as portas do Reino.

A partir desta sólida base bíblica e cristológica, o Papa Leão XIV nos desafia a uma profunda conversão do coração. O maior obstáculo ao amor, adverte o Pontífice, não é a falta de recursos, mas a dureza do coração, a indiferença, que ele descreve como sintoma de uma “sociedade enferma, pois procura construir-se de costas para o sofrimento”. Para curar esta enfermidade, o Santo Padre nos propõe o modelo perene do bom samaritano. Ele nos convida a não passarmos apressadamente pela parábola, mas a nos deixarmos interpelar pela pergunta cortante de Jesus: “Com quem te identificas?”. A qual deles te assemelhas? Ao sacerdote e ao levita, que viram e passaram ao largo, talvez protegidos por suas justificativas religiosas, ou ao samaritano, um estrangeiro, que se deixou mover pela compaixão e se fez próximo? Esta pergunta ecoa com uma força avassaladora nas páginas de Dilexi te e deve ressoar na consciência de cada cristão, de cada comunidade.

A Exortação nos alerta contra as ideologias e desculpas que nos afastam dos pobres, inclusive dentro da própria Igreja. O Papa critica com veemência a “mundanidade espiritual” que se disfarça por trás de práticas religiosas vazias, de discursos que separam a fé da vida ou de uma pastoral de elites que esquece que “a pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual”. Não podemos, adverte o Pontífice, separar a pureza da fé do serviço eficaz ao próximo, especialmente ao oprimido. Uma ortodoxia que não se traduz em ortopráxis da caridade é uma fé morta, como nos ensina o apóstolo Tiago.

Neste exigente caminho de conversão, o Papa Leão XIV nos oferece uma perspectiva surpreendente, libertadora e profundamente evangélica: os pobres nos evangelizam. Esta não é uma frase de efeito, mas uma verdade teológica. Eles, que muitas vezes não têm nada a perder, que vivem na precariedade e aprendem a confiar unicamente em Deus, que desenvolvem laços de solidariedade que nossas sociedades abastadas esqueceram, possuem uma “misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles”. Eles nos ensinam a paciência, a resiliência, a felicidade nas coisas simples. Eles desmascaram nosso orgulho, nossa autossuficiência e o vazio de uma vida centrada na acumulação de bens. Ao nos despirmos de nossas seguranças para nos aproximarmos deles, não estamos apenas doando, mas recebendo. É um intercâmbio de dons, no qual, muitas vezes, recebemos muito mais do que damos. Deixar-se evangelizar pelos pobres é permitir que o Evangelho nos alcance em nossa própria pobreza.

Em última análise, Dilexi te é um poderoso e inadiável chamado à santidade. Uma santidade que não se mede por visões extraordinárias, mas pela capacidade concreta de amar e servir a Cristo na pessoa dos pobres. O Papa Leão XIV nos recorda, com as palavras claras e fortes do Evangelho, que seremos julgados pelo amor. A Exortação é um guia seguro, um mapa detalhado para que cada fiel, cada família, cada paróquia, cada movimento e cada diocese possa reexaminar sua vida e sua missão à luz desta verdade central do Evangelho. Não se trata de uma opção entre muitas, mas do coração pulsante da missão eclesial.

Acolhamos com o coração aberto e a mente dócil este magistério luminoso de nosso Santo Padre. Peçamos ao Espírito Santo a graça de não sermos surdos ao clamor dos pobres, mas de vermos, em cada rosto sofredor, o rosto amado de Cristo que nos repete hoje: “Eu te amei”. E que, tocados por este amor, sejamos capazes de amar da mesma forma, com gestos, com compromisso e com a vida inteira. Que a Virgem Maria, Mãe dos Pobres e Causa de nossa felicidade, nos acompanhe neste caminho de conversão e serviço, para que nossa Igreja seja, cada vez mais, a lar de todos, especialmente dos mais pequeninos do Reino.

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