Crer na Rússia não significa automaticamente acreditar em Deus e nos dogmas religiosos, pertencer à Igreja Ortodoxa não implica necessariamente participar de celebrações litúrgicas, e apoiar os “valores tradicionais” não se traduz automaticamente em adotar os ditames do catecismo.
Por Pe. Stefano Caprio*
Por ocasião do Dia da Unidade Popular na semana passada, o Centro Sociológico Vitsom do Kremlin realizou uma pesquisa sobre o tema das prioridades para a afirmação da identidade dos cidadãos russos, perguntando a qual grupo social ou comunitário eles se referem principalmente. Na prática, “Quem são vocês?”.
Os resultados revelaram, de forma esmagadora, a resposta patriótica “um cidadão da Rússia”, enquanto, surpreendentemente, o último lugar foi ocupado pela frase “um fiel da minha religião”, que teve apenas 2% das respostas (efetivamente a porcentagem de russos que frequentam serviços religiosos), ainda menos do que a resposta “um cidadão do mundo”, que recebeu 3%.
Uma das afirmações mais comuns, com 60%, diz respeito “à Rússia como um país multiétnico”, o que torna o país “muito mais forte”, embora no ano passado os apoiadores da “multinacionalidade” fossem 5% maiores. Os especialistas do Vitsom explicam que “quando se trata da própria identidade pessoal, a cidadania sempre vem em primeiro lugar, superando em muito outros fundamentos identitários, como o gênero, a própria geração, a profissão, a pertença étnica e muito mais”. O reconhecimento patriótico é o fator comum que une as pessoas independentemente de gênero, da idade, da condição social e da região de residência ou de origem.
A contradição mais evidente diz respeito à relação com a religião, em particular com o cristianismo ortodoxo. Uma sondagem da Vitsom de 2019 revelou que 63% dos entrevistados se declararam ortodoxos convictos, e não é fácil explicar a grande discrepância entre a identidade dos russos e sua filiação religiosa. Muito depende de como as perguntas são formuladas, do que resulta que a confissão religiosa é uma componente secundária da identidade patriótica, mesmo para outras religiões “tradicionais” na Rússia, como o islamismo, o budismo e o judaísmo, e os “valores tradicionais” não por acaso são sempre definidos como “morais e espirituais”, sendo o último subordinado do primeiro, definidos pelas autoridades civis e portanto confirmados pela bênção do padre, do rabino, do lama ou do mulá.
A pertença religiosa dos russos é muito formal, como evidenciado pela baixa assiduidade às liturgias, muitas vezes vividas mais como atos folclóricos por ocasião da Páscoa e das grandes festas, quando as pessoas vão à igreja para abençoar os doces e presentes a serem distribuídos aos parentes. Mesmo a participação nas celebrações reflete uma abordagem quase exclusivamente externa: dos poucos que frequentam a Divina Liturgia, a Missa Ortodoxa, não mais de 10% se aproximam dos sacramentos da confissão e da comunhão, enquanto o restante dos fiéis se limita a acender uma vela diante do ícone de seu santo favorito.
O renascimento religioso da década de 1990, após o fim do ateísmo comunista, testemunhou uma espetacular metamorfose de cem milhões de “não crentes” em “devotos ortodoxos”, com uma inicial busca sincera de redescoberta dos valores religiosos, quelogo se tornou um processo de votserkovlenie, o termo russo que indica a “igrejização”.
O batismo e o casamento religioso são a máxima expressão dessa reintegração à vida eclesial, que assume depois conteúdos particularmente intensos apenas aproximando-se da experiência monástica, viveida na Rússia como uma forma radical de identidade com a “Pátria terrena e celeste” no espírito da “fuga do mundo”, vivida como “fim do mundo”, sem realmente acreditar que a vida nesta terra possa se conformar aos princípios eternos da religião.
Para a grande massa dos “crentes ortodoxos” russos, não contam muito questões de salvação individual, da vida de acordo com os ideais espirituais, dos imperativos morais, muito menos das questões teológicas. A ortodoxia é a confissão histórica da Rússia, e dela se deve orgulhar como parte solene da própria cidadania.
E isso também diz respeito a outras religiões, obtendo um “Islã moderado” não por meio de interpretações profundas do Alcorão, mas sim pela consciência de um “Islã russo” que não deve ser contaminado pelo Islã radical proveniente do Oriente Médio ou de outras regiões muçulmanas “não patrióticas”. E isso também se aplica aos países de maioria muçulmana da Ásia Central, que mantêm uma autoconsciência muito semelhante à de seus antigos senhores imperiais.
Além disso, as pesquisas também estimam uma porcentagem muito alta de cidadãos russos que não indicam nenhuma referência à pertença religiosa, entre os 30 e 40% pelo menos, de acordo com as estatísticas oficiais, e talvez até maior na realidade.
A indiferença religiosa é comum a muitas outras populações em países tradicionalmente cristãos, na Europa e no resto do mundo, e para a Rússia, é um fator análogo à adesão à ideologia soviética do século passado. Funcionários do partido e várias instituições públicas professavam devoção aos princípios do comunismo em prol de sua ascensão social e perspectivas de carreira, mas a grande maioria da população se conformava aos princípios ideológicos apenas para evitar complicações, apesar da propaganda implacável das palestras DiaMat, o marxismo-leninismo dialético, juntamente com as palestras antirreligiosas do “ateísmo científico”.
Foram precisamente esses especialistas do ateísmo que, imediatamente após o fim do comunismo, se tornaram os principais professores de religião, alegando que estavam estudando apenas ostensivamente para combatê-la, mas na realidade porque eram os primeiros a se interessar por ela. Isso poderia sugerir um “efeito reverso” da atual propaganda patriótica obsessiva, desde os jardins de infância até as universidades e em todas as esferas sociais, que poderia se reverter rapidamente com o desenrolar dos eventos. Muitos sociólogos, de fato, alertam que o atual conformismo ideológico é fundamentalmente apoiado pela operação militar na Ucrânia, que exige a “mobilização das consciências” antes ainda que da disponibilidade ao combate, uma tarefa frequentemente deixada para as populações minoritárias do Cáucaso e da Sibéria. Não é coincidência que, mesmo na época soviética, o apoio mais entusiasmado às políticas estatais viesse dos militares, que também se transformaram rapidamente em servidores do culto, dada a fácil sintonia entre a guerra e a fé “patriótica”.
Acreditar na Rússia não significa automaticamente acreditar em Deus e nos dogmas religiosos; pertencer à Igreja Ortodoxa não implica necessariamente participar de celebrações litúrgicas; proteger os “valores tradicionais” não se traduz automaticamente em adotar os ditames do catecismo. Depende das circunstâncias e da orientação dos líderes políticos, apoiados por hierarcas religiosos. Pode-se acreditar na “missão divina” da Rússia sem se ter uma ideia precisa da missão evangélica de Cristo e dos apóstolos, e isso torna o retorno da Rússia à religião ainda mais prejudicial do que a profissão do ateísmo militante. Não é por acaso que os ateus declarados na Rússia hoje sejam submetidos a perseguições semelhantes às dos crentes nos tempos soviéticos, tornando-os uma categoria particularmente significativa para a defesa da liberdade de pensamento e da prática religiosa “ao contrário”.
Segundo várias definições, que muitas vezes são transformadas em acusações, os ateus são “imorais” e “indignos da cidadania”, são-lhes atribuídas “disfunções mentais” e “baixa capacidade de compreensão”, são acusados de “vandalismo ético” e “falta de respeito à pátria”, “imaginação febril”, “libertinagem”, “adesão ao princípio da permissividade” e outros epítetos semelhantes. Aqueles que se declaram ateus não são admitidos à identidade russa, porque transmitem “valores não russos e estrangeiros”, como fruto de propaganda e de pregação inversa proveniente de países estrangeiros, e isso precisamente país que fez a maior profissão de ateísmo em toda a história da humanidade.
Até mesmo nos países islâmicos mais radicais, no Oriente Médio e em outras partes do mundo, está sendo dado maior espaço à liberdade de pensamento, apesar da pressão ao respeito à lei islâmica da Sharia, que se limita a colocar em segundo plano cidadãos que não professam a fé muçulmana, sem expulsá-los da comunidade nacional. Enquanto isso, a Rússia parece estar retornando cada vez mais aos tempos mais escuros da intolerância.
Para Joseph Volokolamsky, o maior teólogo do século XV, a religião era a “dimensão instituidora do Estado”, uma expressão frequentemente usada hoje por Putin e Kirill, mas não necessariamente a instituição da consciência e da própria samobytnost, a identidade ou “auto-essência” que se dissolve facilmente nos turbilhões da história.
*Pe. Stefano Caprio é docente de Ciências Eclesiásticas no Pontifício Instituto Oriental, com especialização em Estudos Russos. Entre outros, é autor do livro “Lo Czar di vetro. La Russia di Putin”. (Artigo publicado pela Agência AsiaNews)

