Revisitando as páginas do evangelho que mais diretamente apresentam o olhar iluminador das profundezas humanas e o perfil de um Jesus psicoterapeuta é o ícone bíblico do encontro de Jesus com Zaqueu (cf Lc 19,1-10). O que aconteceu entre Jesus e o chefe dos publicanos de Jericó é o que acontece com cada pessoa que se cruza com o olhar de Jesus. Merece atenção especial analisar a tonalidade da voz, a forma de se comunicar e as atitudes de Jesus. Zaqueu, o pecador público coloca-se em cima da figueira ou sicômoro, a árvore sagrada para os israelitas, enquanto Jesus, o santo, coloca-se no chão e o olha de baixo para cima.
Jesus entra em Jericó e a atravessa acompanhado pela multidão. Quanto a Zaqueu, parece que sobe à figueira levado quase só pela curiosidade. E tudo o que lhe acontece é encantador. Se, num dado momento, não se tivesse verificado a surpresa do olhar de Jesus, ele teria ficado talvez como expectador mudo na sua passagem pelas estradas de Jericó. Jesus teria passado ao seu lado, não dentro de sua vida. Ele próprio não suspeitava que a curiosidade, que o levara a um gesto tão singular, era já fruto duma necessidade de reintegração existencial que o precedia e, sem que a percebesse, o atraia e, bem depressa, mudaria a partir do íntimo, a significação de sua existência.
Mas nada é casual num encontro, numa perspectiva das profundezas humanas. Vejamos o comportamento de Jesus. Quando chegou àquele local, Jesus levantou os olhos e disse-lhe: “Zaqueu, desce depressa, pois tenho de ficar em sua lar”. Cada encontro com Jesus pode ser aquele local junto à figueira, onde levantaremos nosso olhar para Ele, e o chamaremos pelo nome com o mesmo fluxo de energia e de luminosidade que sai do olhar de Jesus para nós.
É impossível medir quanto tenham penetrado os olhos de Jesus no íntimo do publicano de Jericó. Sabemos, no entanto, que são os mesmos olhos com os quais nos deparamos quando nos colocamos diante de Jesus. Deverá ter sido para Zaqueu uma experiência impressionante ouvir chamar-se pelo nome. Zaqueu significa honesto. Para a cultura judaica cada pessoa tem três nomes. Um é dado pela família, outro pela sociedade e o terceiro, a pessoa o constrói. Dentre os três, o último é o mais relevante. E Zaqueu, de honesto só lhe restava o nome, pois era mesmo um pecador público.
Na boca de seus contemporâneos aquele nome era pronunciado com muito desprezo. Agora ouve proferi-lo com uma ternura tal que exprime não só confiança, mas familiaridade e, de algum modo, urgência duma acolhida interior. Jesus fala a Zaqueu como a um velho amigo, que talvez o esquecera, mas nem por isso ele renunciara à sua fidelidade e, por conseguinte, entra com a doce pressão do afeto na vida e na lar do amigo reencontrado. Jesus é o alter ego de Zaqueu. Desce depressa, pois tenho de ficar em sua lar.
No relato de Lucas, impressiona o tom da linguagem, pois tudo é tão personalizado, delicado e afetuoso. Não se trata apenas de traços de humanidade. Há uma urgência intrínseca de Jesus em estar com o verdadeiro eu do outro desintegrado: É necessário que eu fique em sua lar.
Segundo os mapas secretos da alma humana e as pulsões de suas entranhas, Jesus encontrou, em seu caminho, a Zaqueu como também a cada um de nós. Detém-se na sua lar, onde talvez ele já não mais morasse, como se se tratasse dum encontro previsto desde o princípio.
A lar de Zaqueu tornou-se, não obstante, as numerosas murmurações da mesquinhez humana, um lugar de revelação, de insight, o cenário dum verdadeiro milagre da reintegração do humano, graças à iluminação vinda do mais secreto olhar terapêutico de Jesus. Certamente que isso não aconteceria, se Zaqueu não se dispusesse internamente a se libertar dos nós egoístas e narcisísticos que escravizavam seu coração e o aprisionavam às injustiças e à fraude, como numa armadilha existencial. O mesmo se dá em cada encontro nosso com Jesus e com o outro. Não devemos pensar que, sozinhos e sem prestar atenção no caminhar de nossa vida, encontraremos a reintegração do nosso ser. É indispensável a intervenção do outro, do diferente, da pessoa de Jesus para acontecer a nossa reintegração.
Essa intervenção é imprescindível, pois, o indivíduo por si mesmo, não pode, e nada alcança, senão no confronto consigo mesmo, através do outro. A oração é também um bom lugar para o encontro consigo mesmo, através do outro, na entrega confiante a uma pessoa, a um vivente, Jesus. No encontro com Jesus, pela nossa Jericó, devemos estar certos de que antes de pronunciarmos nossa palavra, Jesus já verbalizou em seu interior a pré-disposição de um encontro agendado conosco desde a formação de nosso ser. É esse agir misterioso de Jesus em nossa vida, que opera a partir de dentro de nós e da própria essência de Deus, que deve ser captada por nós e devolvida a Jesus, em forma de abertura de nosso ser para que Ele entre em nossa lar e nos traga a salvação.
Desejo e palavra constituem-se no início necessário de todo encontro autêntico com o humano e com o divino que nos habita e nos transcende. A atenção que se deve dar às leis da comunicação pode ser útil para o crescimento espiritual, mas tudo há de estar fundado no acreditar que o Outro não é um objeto, mas um sujeito livre e capaz de realizar ações inimagináveis e surpreendentes e, quando este outro é o próprio Jesus, mais surpreendente ainda o é para nós este encontro.
O surpreendente acontece em Zaqueu, uma metamorfose radical que o leva a uma atitude que revoluciona toda sua vida. Ele se dispõe a distribuir a metade dos seus bens aos pobres e, caso alguém reclame, devolver-lhe-á quatro vezes mais o que lhe estiver extorquido. Este é o cumprimento perfeito da Torá, pois segundo ela quem prejudica ao outro estará rompendo quatro relações, a saber: com o outro, consigo mesmo, com Deus e com a comunidade. Portanto, há que devolver quatro vezes para reatar os quatro relações rompidos.
Que o encontro entre Jesus e Zaqueu nos oriente em nossa busca de luz ainda dentro do túnel no qual nos encontramos, sem pretender esperar pelo final da travessia do mesmo para encontrá-la.