A Fé Cristã e a construção do discurso sobre a Fé

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Quando queremos aprofundar sobre a fé, primeiramente, precisamos refletir sobre a articulação do discurso da fé, retornar aos seus fundamentos, conhecer o contexto sociocultural, sua prática e a variedade de expressões que ela comporta.

Para nos ajudar nesta reflexão, tomemos como analogia a visão de uma paisagem. Ao contemplá-la, não enxergamos nosso olho que a vê. Para ver nosso olho é preciso realizar uma segunda operação que envolve a percepção da paisagem e, ao mesmo tempo, tomar consciência das condições em que ela é percebida por nós através do olho. Caso haja alguma falha na vista ou se há entraves, a visão fica prejudicada, cabendo então o recurso a instrumentos ou lentes para melhorar a visão.

Quando falamos da fé cristã estamos na mesma condição. Percebemos a paisagem da nossa fé, enquanto ela se articula em nossa vida real em sociedade. De imediato, podemos não captar logo os condicionamentos históricos dessa percepção, pois nossa vista pode estar defeituosa e não o sabemos.

Para conhecer nossa fé, o primeiro elemento a ser analisado são as condições objetivas e subjetivas dentro das quais ela é vivida e percebida, interpretada e articulada.

Justamente para esclarecer essa questão é que precisamos conhecer os conceitos de horizonte e de espaço cultural no qual estamos mergulhados, para saber quais são as perguntas e questionamentos feitos sobre a fé e quais as respostas mais comuns que lhes são dadas.

Num segundo momento há que se colocar a questão da autenticidade e dos critérios das respostas dadas, quem as fornece e com quais interesses. Pergunta-se também sobre o lugar social de quem interpreta a fé e que visão ele possui de Jesus Cristo, da Igreja e dos mecanismos de funcionamento da sociedade.

O que é inegociável em toda e qualquer interpretação da fé é a identificação, nesta resposta, do núcleo central da fé cristã, que deve ser sempre o Jesus histórico e o Cristo da fé, em conformidade com os relatos dos evangelhos.

A articulação da fé não é um mero processo interior ao nosso intelecto que conhece o objeto da fé e o trabalha. Esse processo acontece dentro dum horizonte histórico, dentro de um quadro de referência sociocultural que nos é dado. Esse quadro de referência não é mero produto individual. Ele é uma realidade social que nos é dada através da participação no processo de produção dos bens materiais e simbólicos de uma sociedade.

É a própria vida cultural do ser humano que está em jogo quando ele trabalha e descobre o sentido humano de seu trabalho, de sua vida, de suas atividades, de suas relações com os outros, com o mundo e com Deus.

A rede de relações e o processo de produção desses bens são armazenados na própria visão do mundo que construímos. Com o tempo produzimos uma rotina na qual organizamos os mais variados objetos de nossa vida. Estruturamos assim socialmente o próprio modelo de pensar e interpretar a realidade que constitui a teia de relações que dão sentido à nossa vida. Criamos nosso imaginário social e cultural.

É dentro desse quadro de referência existencial que nascem as perguntas da vida, que desembocam nas questões de fé. Elas chegam direcionadas por uma prática histórica já articulada e torna-se a mediação dessa expressão da fé. A fé acaba sendo mediada, é um produto desta vivência sociocultural.

Aprofundando um pouco mais, podemos nos questionar: de que é feito esse modelo de pensar? Antes de tudo é preciso dizer que ele não é formado por ideias abstratas, como que recebidas do além. Não há nada no nosso intelecto que antes não tenha passado pela experiência que vem do nosso trato com o mundo real e das coisas; já dizia Aristóteles: nada há no intelecto que antes não tenha passado pelo crivo dos sentidos.

Esse modelo de pensar é construído com a matéria prima específica dos interesses reais que nascem no pro­cesso histórico do qual participamos. À medida que vivemos, instituímos relações constantes e comportamentos padrões que condicionam a nossa prática de vida.

Quando falamos de nossa resposta de fé não queremos escapar a essa construção social da realidade e do nosso conhecimento. Entendemos que ela é dada no contexto dessa prática de vida. Em nossa resposta de fé estão incluídas as mesmas perguntas que nascem dos interesses de nossa vida e a moldam continuamente.

Qual é a razão dessa colocação teórica sobre a fé? Sua razão e importância consistem em fazer-nos descobrir o quadro de referência ou a moldura histórica dentro da qual nossa fé é vivida e interpretada. Faz-nos perceber logo de início que a imagem que fazemos de Jesus é condicionada pela vida das pessoas em sociedade. Só para não ficarmos numa afirmação distante, basta ver a evolução da imagem de Deus na Bíblia. Enquanto Israel vagava pelo deserto, Javé era visto como um Deus nômade. Quando o povo de Israel tornou-se sedentário, Javé passa a ser interpretado como um agricultor e o povo então troca a tenda do deserto pelo templo de Jerusalém.

E, hoje, com que imaginário social nós construímos nosso discurso sobre a fé?

Pe. Nelito Dornelas (in memorian)

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