A influência da Religião na qualidade das relações conjugais

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A religião, de fato, pode ser um recurso para melhorar a qualidade de vida do casal no enfretamento dos conflitos conjugais, com capacidade de resolução, ressignificação ou adaptação de problemas e desacordos relacionais da díade.

Padre Wladimir Porreca, diocese de São João da Boa Vista

O Padre Wladimir Porreca, diocese de São João da Boa Vista, Brasil, por meio de uma pesquisa qualitativa, reflete a interface religião e família. Transcrevemos aqui algumas considerações de suas reflexões e elementos de discussão dos dados obtidos com alguns casais brasileiros sobre a influência que a religião exerce na qualidade da relação conjugal.

Os relacionamentos conjugais, mesmo considerando-se a vertiginosa diminuição da influência da religião na sociedade contemporânea, ainda são permeados pelas doutrinas e práticas religiosas, principalmente por aquelas religiões que exercem intensivos trabalhos direcionados à família e ao casamento, atribuindo a eles princípios e valores sagrados. Contudo, é necessário considerar as diversas expressões religiosas, os diferentes momentos históricos e os mais variados graus de identificação religiosa.

A influência da religião na vida do casal é diminuída quando a religião é restringida à esfera privada e individualista, com a ilusória ideia de neutralidade do casal frente aos aspectos religiosos presentes no contexto social e na própria identidade dos membros da família. A concepção individualista de privacidade religiosa contribui, assim, com o modelo de que religião e família deveriam ocupar lugares distintos.

Considerando-se a ideia da visão divisória, de fato, a religião exerceria pouco e, cada vez menos, influência no relacionamento conjugal. Isso contrapõe os relatos dos casais entrevistados, quando descreveram o cotidiano de suas relações familiares, marcados profundamente pela prática e pelos conceitos religiosos. Parece que essa visão divisória entre família e religião é mais uma ideia do que uma realidade, pois os casais entrevistados sinalizaram com fatos cotidianos a influência religiosa em suas subjetividades humanas e cultural/social, em diferentes momentos, modos, formas e contextos em que vive a família.

Os entrevistados apontaram que, mesmo com o cenário contemporâneo individualista e relativista, consideraram indiscutível que a religião e a família são interligadas, mesmo que a família tenha configurações diversificadas e seja permeabilizada de novos valores divergentes da religião. Por isso, a influência da religião no relacionamento conjugal não pode ser negligenciada; ela representa parte integrante da vida cotidiana de muitos casais e suas famílias, desde o inicio da união dos cônjuges até o papel que ela desempenha na interação entre os membros da família entre si e com a sociedade onde estão inseridos.

Um dado interessantíssimo apontado foi que os valores e modelos religiosos aprendidos pelos cônjuges na família de origem tendem a influenciar – quando não, condicionar – de maneira considerável e concreta a vida do casal, mesmo que seja em menor intensidade e/ou com “diferentes roupagens”. Mas alertaram que esses valores e modelos, se não adaptados e ajustados ao novo relacionamento conjugal em seu contexto e condicionamentos, poderiam prejudicar significativamente o relacionamento conjugal e familiar, principalmente quando o casal não tem homogamia religiosa ou quando os cônjuges não estabelecem fronteiras e considerável distanciamento para com os seus pais e parentes da família de origem, em suas relações familiares nucleares.

Os casais entrevistados não só declararam a influência da religião na vida conjugal como atribuíram elementos positivos e negativos da influência religiosa em seus relacionamentos, e os identificam diversamente.

Os elementos religiosos positivos, vistos como recursos nos enfrentamentos da vida cotidiana, estiveram presentes desde a escolha dos parceiros até a decisão de continuarem juntos, apesar dos problemas e conflitos conjugais. Notável é que a capacidade de superação e ressignificação das situações tensas e conflituosas dos casais estava ancorada fortemente na dimensão espiritual e religiosa dos casais e filhos, o que os motivavam e os orientavam a não desistirem da relação conjugal e familiar; muito pelo contrário, os motivavam a se empenharem nos relacionamentos entre os membros das famílias e a investirem nessas relações.

Nota-se que, quando os casais relataram passar por situações de problemas e conflitos gerais, foram unânimes em afirmar que a oração, a assiduidade aos ritos religiosos, os ensinamentos religiosos e o convívio com outras pessoas religiosas contribuíram substancialmente para: a) desejassem e se tornassem pessoas melhores; b) ficassem mais tempo juntos; b) conversassem mais e melhor, o que os levou a repensarem e ressignificarem suas atitudes; c) desempenhassem maior tolerância, respeito e paciência diante das divergências e diferenças entre eles; d) se sentissem impulsionados a valorizarem e serem gratos  pelo  “bom” em suas próprias relações; e) ampliassem o círculo de amizades e relacionamentos sociais (e confiassem neles) e, para alguns casais, recebessem até ajuda financeira; g) percebessem na prática religiosa  um momento especial para terem contato com Deus.

Contudo, os casais entrevistados percebem que, quando os princípios religiosos são aplicados acima do respeito humano ou em excesso e descontextualizados, a religião atrapalha os relacionamentos familiares, gerando conflitos e tensões; principalmente, quando há ideias e conceitos sobre crenças e práticas religiosas diferentes (heterogamia). Nesse caso, não há espaço nem tempo para serem compartilhados e vividos livremente em uma família; ou mesmo quando as pessoas são seguidoras da mesma religião (homogamia), em especial as da família de origem, e invadem o espaço conjugal com imposições na relação familiar/conjugal de elementos religiosos sem o consentimento e aceitação dos próprios membros da família.

No que se refere a religião como um recurso na qualidade da relação conjugal, os casais foram unânimes em destacarem que a religião e a prática religiosa os ajudaram: a) na configuração mais saudável da conduta conjugal; b) a incentivar os parceiros a cumprirem seus papéis e responsabilidades familiares; c) a melhorarem o relacionamento deles com os filhos e esses entre si; d) a quererem o bem do outro; e) a gerarem bens relacionais como: confiança, afabilidade e reciprocidade; e f) a compreenderem que a religião não é somente um recurso para resolverem problemas e conflitos, mas para manterem seus  relacionamentos com qualidade, por meio da estabilidade e durabilidade, e, ainda, para ser uma direção para a educação dos filhos.

A religião, de fato, pode ser um recurso para melhorar a qualidade de vida do casal no enfretamento dos conflitos conjugais, com capacidade de resolução, ressignificação ou adaptação de problemas e desacordos relacionais da díade.

Comumente, a religião inclinada ao perdão, à paciência, à resignação, ao colóquio pode colaborar para melhor relacionamento entre os cônjuges, e, ainda, ser capaz de influenciar investimentos dos membros do casal no relacionamento, como: empatia, renúncia, aceitação, respeito, tolerância e negociação. Além disso, pode ser uma rede de apoio formada pela comunidade religiosa, quando essa oferece aos seus membros formas alternativas de solucionar conflitos.

A religião, quando culturalmente apropriada, é capaz de nutrir a qualidade das relações conjugais e ser elemento saudável para as pessoas. Cabe aos líderes e seguidores religiosos, aos profissionais da saúde e até aos próprios casais, mesmo àqueles que tiveram uma formação reducionista/negacionista da religião, considerarem como as práticas religiosas podem ser incorporadas aos seus tratamentos e vivências para auxiliarem os casais a utilizá-lá como recurso na qualidade da vida a dois; bem como buscarem, “como garimpeiros que buscam o ouro em meio às pedras”, elementos religiosos capazes de criar oportunidades para os cônjuges mudarem, desenvolverem e compreenderem melhor a religião que compartilham, a partir de crenças, práticas religiosas e envolvimento da comunidade, benéficos para a relação conjugal.

Diante desses dados, embora algumas crenças e práticas religiosas tendam a ter mais influência unificadora ou dividida que outras, esses dados sugerem que o fator mais relevante está em como as crenças e práticas religiosas são aplicadas na vida conjugal e familiar, e por quem, e não tanto em o que são em si mesmas.

É relevante também considerar que as influências divisórias entre religião e família nem sempre podem ser inerentemente negativas; muitas vezes são necessárias, dependendo de vários elementos e dimensões que constituem as relações familiares, como: idiossincrasia dos membros e das relações, contexto social onde a família está inserida, a rigidez ou flexibilidade da religião (fanatismo e alienação pessoal e social). É mister também considerar que, mesmo quando a religião tem uma influência divisória, que parece negativa para esse relacionamento, isso não significa necessariamente que será́ negativa no longo prazo do relacionamento a dois.

Entre tantas reflexões de várias e diferentes investigações sobre a influência religiosa na relação conjugal já́ existentes, esse texto teve a intenção de contribuir com as pesquisas, na perspectiva dos próprios casais, sobre os diversos e diferentes elementos religiosos que podem colaborar ou não na qualidade no relacionamento a dois, visualizando a influência da religião nas relações conjugais e familiares, evidenciando os aspectos positivos dessa influência, acompanhados de alguns elementos de alerta para fatores de risco, que podem atrapalhar os relacionamentos saudáveis na família.

Corroborando com inúmeras pesquisas e provocando novas investigações, essa pesquisa teve o limite dos casais entrevistados, em sua maioria, religiosamente homogâmicos e com práticas religiosas atuantes, o que pode ter conduzido as reflexões por um caminho específico. Por essa razão, cabem novas pesquisas com casais brasileiros, seguidores e frequentadores ativos, ou não, de alguma religião, ou mesmo com aqueles que se declaram sem religião.

(O artigo na integra foi publicado pela Phenomenological Studies – Revista da Abordagem Gestáltica | Vol. XXVIII-02 (2022) | 200-212)

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