Abusos, Leão XIV recebe vítimas e ativistas: “O Papa nos ouviu e apoiou”

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O Papa recebeu no Vaticano seis membros do conselho diretivo da ECA Global, associação internacional de direitos humanos que luta por maior apoio e indenizações às vítimas de abusos, que pediu também mais empenho e colaboração à Igreja Católica. A audiência com o Pontífice foi considerada “um passo histórico e cheio de esperança rumo a uma cooperação mais ampla”.

Salvatore Cernuzio – Cidade do Vaticano

Tudo começou com uma carta, que hoje se transformou em um encontro no Palácio Apostólico — o primeiro do Papa Leão XIV, desde sua eleição, com um grupo de vítimas de abusos e ativistas que lutam contra o que os últimos pontífices chamaram de uma “chaga”. Leão XIV recebeu na manhã de hoje seis membros do Conselho Diretivo da ECA Global (Ending Clergy Abuse), organização de direitos humanos composta por ativistas e vítimas de abusos sexuais cometidos por representantes da Igreja Católica, provenientes de mais de 30 países e seis continentes. A rede, especialmente ativa nos Estados Unidos, desde sua fundação em 2018, trabalha para que a Igreja Católica siga as recomendações da ONU de 2014 quanto a uma política eficaz de “tolerância zero”. A audiência de hoje com o Papa Leão, afirmam os membros da ECA, representa “um passo histórico e cheio de esperança rumo a uma maior cooperação”.

Essas palavras foram registradas pela organização em uma declaração e, depois, apresentadas à imprensa em uma conferência realizada em um hotel da região de Borgo Pio, nas proximidades do Vaticano, pelos seis participantes do encontro com o Pontífice: Gemma Hickey (Canadá), Timothy Law (EUA), Evelyn Korkmaz (Canadá, Primeira Nação), Matthias Katsch (Alemanha), Janet Aguti (Uganda) e Sergio Salinas (Argentina). Todos vieram de contextos e culturas diferentes, mas unidos pelo mesmo objetivo: garantir que os abusos nunca mais se repitam e promover uma colaboração mais eficaz com a Igreja.

Acolhimento e escuta

Os seis membros da ECA expressaram unanimemente satisfação pela audiência com Leão XIV — por sua postura, abordagem e capacidade de ouvir.
Gemma Hickey, vítima de abusos em Newfoundland e Labrador (Canadá) por parte de um sacerdote que foi primeiro afastado e depois transferido para duas paróquias, afirmou: “O Papa Leão foi muito aberto, e cada um de nós pôde compartilhar reflexões pessoais. Ele foi muito caloroso. Escutou-nos… Também tem um ótimo senso de humor. É realmente humilde.” Ao Papa, o grupo leu uma declaração própria, para iniciar a audiência “de mente aberta”, e apresentou o projeto Iniciativa Tolerância Zero, destacando “a importância de padrões globais coerentes e políticas centradas nas vítimas”. Durante o encontro, também se falou sobre o trabalho da Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores, que na semana passada apresentou seu segundo relatório anual. O Papa sugeriu que houvesse um “colóquio” entre os dois organismos.

“Foi uma conversa profundamente significativa. Reflete um compromisso compartilhado com a justiça, a cura e uma mudança verdadeira”, afirmou ainda Hickey. “Os sobreviventes há muito tempo buscam um lugar à mesa das negociações, e hoje nos sentimos ouvidos.”

A audiência do Papa com os membros da ECA Global

A audiência do Papa com os membros da ECA Global   (@VATICAN MEDIA)

Um colóquio direto e respeitoso

O encontro de hoje, como mencionado, nasceu de uma carta enviada pela ECA ao recém-eleito Pontífice. Inspirados pelas palavras de Robert Francis Prevost, pronunciadas na Loggia das Bênçãos, os membros da entidade se apresentaram “como construtores de pontes, prontos para caminhar juntos rumo à verdade, à justiça e à cura”. Em tempos tão “polarizados”, escreveram, “o ato mais radical que podemos fazer agora é sentar e conversar”. O Papa respondeu “positivamente” à carta e, com um “gesto de abertura”, aceitou a oportunidade de “um colóquio direto e respeitoso sobre os caminhos a seguir”. Daí surgiu a reunião privada no Palácio Apostólico, que durou cerca de uma hora, mas foi densa em testemunhos e propostas. “Viemos não apenas para expressar nossas preocupações, mas também para avaliar como podemos colaborar para garantir a proteção de crianças e adultos vulneráveis em todo o mundo”, afirmou Janet Aguti, de Uganda, vice-presidente do conselho da ECA.

Não havia “raiva”, esclareceu novamente Gemma, mas apenas “esperança” de responsabilidade e mudança duradoura: “Acreditamos na dignidade intrínseca de cada criança e adulto vulnerável, na coragem de cada sobrevivente e na responsabilidade ética da Igreja de agir com transparência e compaixão. Nossa missão é apoiar os que sofreram danos, promovendo reformas que protejam os mais frágeis e contribuindo para restaurar a confiança e a integridade de uma instituição que sabemos ser capaz de realizar grandes coisas.”

Vontade de trabalhar juntos

O objetivo, acrescentou Tim Law, cofundador e membro do conselho da ECA nos EUA, “não é o confronto, mas sim a responsabilidade, a transparência e a disposição de trabalhar juntos para achar soluções”. Isso não é pouco, considerando que muitos — como relataram —, ao buscarem ajuda, encontraram apenas um muro. “Como sobrevivente de uma escola residencial, carrego o peso do trauma intergeracional causado por instituições que deveriam nos proteger. O encontro de hoje é mais um passo rumo à verdade e à reconciliação”, destacou a canadense Evelyn Korkmaz.

Já Matthias Katsch, da Alemanha, explicou que pediram ao Pontífice que oferecesse “esperança”, entendida como “justiça”, “indenizações” e “melhores proteções para crianças e adultos vulneráveis”. “Hoje, não basta mais que os sobreviventes falem”, acrescentou. “É necessário que a sociedade escute.” Não é apenas a Igreja — é toda a sociedade, inclusive a italiana — que precisa estar disposta a ouvir e tirar consequências do que os sobreviventes revelaram.

Durante a conferência, também falou Francesco Zanardi, membro da ECA e da associação Rete L’Abuso, que anunciou a elaboração de um relatório sobre os casos de abuso e pedofilia clerical na Itália.

A organização concluiu o encontro “ressaltando a urgente necessidade de um colóquio contínuo, compassivo e colaborativo, para construir um porvir em que segurança, responsabilidade e dignidade não sejam apenas defendidas, mas em que as vozes dos sobreviventes sejam exemplo para todos”.

Papa com Pedro Salinas

Papa com Pedro Salinas   (@VATICAN MEDIA)

Dois livros de presente

O Papa recebeu de Sergio Salinas o livro “La verdad nos hizo libres” (“A verdade nos tornou livres”), sobre o movimento religioso Sodalicio, fundado no Peru nos anos 1970, expandido por toda a América Latina e suprimido no início deste ano por Papa Francisco. Vítima ele mesmo de abusos dentro do movimento, Salinas, junto com a jornalista Paola Ugaz, revelou toda a história em um livro-denúncia. Trata-se de um caso bem conhecido de Papa Leão, que viveu mais de vinte anos no Peru, primeiro como missionário agostiniano e depois como bispo.

Outro livro foi entregue por Matthias Katsch: “Damit es aufhört” (“Para que acabe”), obra de sua autoria que descreve o escândalo dos abusos e seus desdobramentos desde 2010 na Alemanha, entrelaçados à sua própria história pessoal. À margem da conferência, respondendo às perguntas de Stefanie Stahlhofen, da redação alemã da Rádio Vaticano – Vatican News, Katsch observou: “Não foi apenas o primeiro encontro com o Papa Leão — foi o primeiro encontro de um Papa, não com vítimas isoladas, mas com uma organização de vítimas. Trata-se de um salto de qualidade.”

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