Uma das marcas deixadas pelo ator e homem de cultura da ilha de Guadalupe, Jacques Martial, falecido a 13 de agosto de 2025, é a sua presidência do Memorial ACTe, Museu sobre a História do Tráfico Negreiro Transatlântico e da Escravatura, inaugurado no ano de 2015, em Pointe-à-Pitre. É o maior museu dessa natureza e foi criado para dar vida a uma memória partilhada dessa tragédia da humanidade. Evoca-se aqui, em jeito de homenagem, o trajeto artístico e intelectual de Jacques Martial.
Dulce Araújo – Vatican News
A ideia do Memorial ACTe, inaugurado a 10 de maio de 2015 na ilha de Guadalupe, para recordar a História do Tráfico Negreiro Transatlântico e da Escravatura, surgiu nos anos 90, sob impulso do Comité Internacional dos Povos Negros, mas só veio a concretizar-se anos depois. Na sua inauguração estiveram os então chefes de Estado da França, Benin, Haiti, Mali e Senegal. O seu primeiro presidente foi o agora saudoso, Jacques Martial, artista e intelectual, que lhe deu um cunho particular.
Em vésperas do Dia Internacional de Memória do Tráfico Negreiro Transatlântico e da sua Abolição (23 de agosto) e a uma semana da morte de Jacques Martial (13 de agosto 2025), homenageámo-lo, repropondo, no programa “África em Clave Cultural: personagens e eventos”, uma entrevista que concedera à Rádio Vaticano a 18 de maio de 2020 (Dia Mundial dos Museus) sobre a importância desse Memorial/Museu. Para além da entrevista, o programa ilustra também o trajeto do artista na crónica de Filinto Elísio. Tudo a ouvir e/ou a ler em baixo:
Entrevista
– Jacques Martial, qual é a razão profunda, a natureza e a importância do Memorial ACTe de que é Presidente?
“Que se saiba, o Memorial ACTe é o maior museu do mundo dedicado à História da Escravatura. É um Museu que foi construído na ilha de Guadalupe, na cidade de Pointe-à-Pitre e inaugurado em 2015. É um lugar relevante que deveria ter existido há muito tempo e que, finalmente, foi construído para falar e partilhar essa História. A sua ambição é a de criar uma memória partilhada da História da Escravatura; trata-se de um desafio muito relevante, essencial. A ideia que levou à construção deste Memorial ACTe surgiu da tomada de consciência da História que está na base das sociedades modernas, do capitalismo, da mundialização, mas que tudo isso passa sob silencio; a maior parte das pessoas não estabelecem uma relação consciente, por um lado, entre o fenómeno da escravatura e a trata transatlântica, e por outro, entre esta história e a modernização do mundo. No entanto, para se compreender hoje os desafios do porvir que estamos a construir, é indispensável compreender o que se passou, compreender a História e compreender esta História. Não se pode não fazer isto, sob pena de não conseguirmos viver juntos. É isto que prevaleceu na construção deste lugar [de Memoria] e é a razão pela qual ele existe; é para colmatar este vazio e permitir às populações informar-se e tomar consciência da importância dessa história e de a poder recolocar num contexto histórico, por um lado, e por outro também contexto contemporâneo, geográfico e de ver como o mundo inteiro está implicado neste vasto tráfico e nas reverberações que isto tem hoje.”
– O que faz desse Memorial ACTe de Pointe-à-Pitre o mais ambicioso lugar de Memória jamais dedicado à Escravatura? – É que causa uma certa interrogação pensar que até 2015, não havia no mundo nada dessa envergadura para recordar esse melancólico capítulo da História da África e do mundo!…
“Sim, efetivamente, é vertiginoso quando se pensa nisto! Existiam lugares de memória, mas um museu dedicado a esta história utilizando tecnologias contemporâneas, não existia. Não existia um museu como lugar vivo, não só de conservação, mas também de ensino, não existia um museu com estas características e desta importância. O que constitui a sua singularidade é, antes de mais, a sua arquitetura, é muito ambicioso deste ponto de vista e diria mesmo que em termos de dimensão reflete a dimensão do crime de que se quer falar e que se pretende denunciar. Tem uma sala de exposição permanente de 1700 metros quadrados, uma de exposição temporânea de 700 metros quadrados, uma sala polivalente de espetáculos ao vivo, seminários, encontros de mediação cultural, de genealogia….é, portanto, todo um conjunto de instrumentos que são postos à disposição, antes de mais, dos habitantes da ilha de Guadalupe, mas também de visitantes, para demonstrar, compreender o que foi essa História que está dentre da História e que não se trata apenas de mostrar algo do qual se pretende desfazer, não! Isso faz parte da História, da Grande História e da nossa História como seres humanos onde quer que estejamos no mundo.”
– O senhor foi o primeiro Presidente do Memorial ACTe nos seus primeiros quatro anos de atividade. Que balanço traça desse primeiro período de existência do Memorial-Museu?
“Oiça, isso foi, sem dúvida alguma, uma das grandes, grandes aventuras da minha vida profissional… Esse Memorial é – sublinho – muito grande num país muito pequeno. A ilha de Guadalupe tem apenas 380 mil habitantes e havia, portanto, uma certa interrogação da parte da população que se perguntava antes de mais, se não era demasiado grande, qual seria o significado de um sítio tão ambicioso num território tão pequeno, mas essas interrogações e temores – podemos dizer hoje – foram varridos pelos sucesso, quer dizer, o sentido e a urgência desse lugar foram compreendidos pela população de Guadalupe que hoje se sente particularmente orgulhosa, honrada com esse Memorial ACTe que reivindica como algo que nacional, como um lugar que essa terra deu à luz. Recebemos nesse pequeno território entre 150 e 170 mil visitantes por ano. E paga-se [para entrar no Memorial], não é, portanto, um lugar para onde se vai por acaso; custa dinheiro e essa frequentação é uma resposta ao facto de que havia necessidade de um Memorial como esse; tem, portanto, razão de existir, faz sentido. Há também a considerar todo o programa de exposições temporárias que é realizado e que dá vida ao Museu. Exposição sobre Edouard Glissant, Gabriel Garcia Marques, sobre o povoamento de Guadalupe e as grandes migrações que fizeram de nós o que somos hoje. Foi a última exposição que apresentei em parceria como o Museu Quais d’Orsay de Paris, assim como também a exposição “O Modelo Negro: de Gericault a Picasso” que mostra como grandes artistas da pintura souberam – em França/Paris, desde finais da Revolução Francesa até meados do século XX – explorar a presença de modelos negros para as suas artes. Portanto, é todo um conjunto de acontecimentos culturais que antes, nunca teriam tido lugar nessa parte do mundo.”
– 18 de Maio é Dia Mundial dos Museus. Qual a importância de um de um dia como este, tendo em conta a História da África e da melancólico página do Tráfico Negreiro e da Escravatura?
“É um Dia para alertar as pessoas para o facto de que os museus são lugares importantes, lugares que conservam a nossa História, lugares de testemunho da nossa História e que permitem conhecer, compreender, revisitar a nossa História. O museu é um lugar que nos pertence, é um lugar moderno, é um lugar de hoje. Um Dia assim serve para enviar um sinal aos cidadãos de todos os países e cidades de que é preciso frequentar os museus, lugares que existem para nós todos, não apenas para pessoas cultas, para os frequentadores habituais, não! É para cada um de nós! É este o sentido deste Dia e a importância de o celebrar.”
Esta emissão homenageia-se também Gérard Chaliant, jornalista francês e escritor que muita atenção deu às lutas de libertação de vários países, incluindo Cabo Verde e a Guiné-Bissau. Ele faleceu no dia 20/8/2025.
Crónica
Alguns aspetos da vida e da obra de Jacques Martial
No passado dia 13 de agosto, faleceu em Paris o ator e político francês Jacques Martial, aos 70 anos, na sequência de doença prolongada. Era um amante da poesia. Uma figura cultural de referência para os antilhanos e para a diáspora negro-africana.
Nascido em 7 de maio de 1955 em Saint-Mandé, no Val-de-Marne, na ilha francesa de Guadalupe, Jacques Charles Victor-Emmanuel Martial, desenvolveu cedo a paixão pelo teatro.
Após a sua formação na escola de teatro de Sarah Sanders, tornou-se seu assistente e também professor, onde apresentou grandes dramaturgos como Jean Racine, William Shakespeare e Aimé Césaire, enquanto encenava várias peças do teatro de rua.
Jacques Martial estreou no cinema, em 1981, na comédia Le Maître d’École, de Claude Berri, com Coluche . Posteriormente, participou de vários filmes.
Nessa década de 1980, criou a companhia “Black Comedy”, após as batalhas lideradas por Calixthe Beyala e Luc St. Eloy, no Prémio César, pela visibilidade da diversidade de atores negros.
Mais tarde criaria a associação Rond-Point des Cultures que, em parceria com o Théâtre du Rond-Point, e em vários teatros de Paris, apresentou eventos destacando culturas estrangeiras e, de forma mais geral, a criatividade de artistas de minorias invisíveis.
Em 1989, conheceu Roger Hanin nas filmagens de Jean Gamlot, Aventurier. No mesmo ano, protagonizaram juntos a série televisiva policial Navarro (1989-2005), da TF1.
Além do seu trabalho no cinema, televisão e teatro, Jacques Martial também atuou como dublador. Estreou em 1991 a dublar Denzel Washington em Mississipi Masala, de Mira Nair, e depois na obra-prima de Spike Lee, Malcolm X. Ele foi a voz francesa de Denzel Washington noutros quatro filmes, incluindo O Homem de Fogo.
Também emprestou a sua voz a Wesley Snipes em seis filmes; a Will Smith no primeiro Bad Boys; a Laurence Fishburne em Justa Causa; e a Samuel L. Jackson em Shaft, bem como na série Star Wars como o Mestre Jedi Mace Windu.
Em 2000, criou a sua própria companhia de teatro, a Compagnie de la Comédie Noire, com a qual trouxe para Guadalupe a peça Échange, de Paul Claudel. Em seguida, interpretou o papel do mendigo em Electra , de Jean Giraudoux , com direção de Jean DalricEm 2002, trabalhou com Irina Brookm em Julieta e Romeu, baseado na peça de Shakespeare.
Em 2003, dirigiu e interpretou Cahier d’un retour au pays natal, de Aimé Césaire , que apresentou em várias partes do mundo (Guadalupe, Singapura, Austrália, Fiji, Nova Caledónia, Nova Iorque, Martinica, Paris, etc.).
De 2006 a 2015, foi presidente do Estabelecimento Público do Parque e do Grande Halle de la Villete, depois, de 2015 a 2019, presidiu o Memorial ACTe ou Centro Caribenho de Expressão e Memória do Tráfico de Escravos e da Escravatura, em Guadalupe.
Implementou no MACTe o “Novo Nascimento Coletivo”, um projeto de colóquio entre “História (a da escravidão), Arte (através da exposição de obras que lançam luz sobre as questões e consequências dessa História) e Sociedade (para mostrar como a sociedade moderna questiona e reflete sobre a escravidão, o preconceito e o racismo).
Em julho de 2020, Jacques Martial foi eleito vereador de Paris, delegado responsável pelos Territórios Ultramarinos. Em novembro de 2022, foi eleito vice-prefeito de Paris, responsável pelos Territórios Ultramarinos.
Em 2023, fez a sua última aparição nas telas no filme ” Uma História de Amor”.
Jacques Martial foi condecorado com a Legião de Honra em 2006 e nomeado Oficial de Artes e Letras em 2015.
(Filinto Elísio – Rosa de Porcelana Editora)