Se entre as dinâmicas da vida, a decrepitude de todas as coisas é praticamente inevitável, pois não há o que escape ao desgaste de energia e não conheça, desse modo, seu estiolamento e declínio, seja a existência individual, a dinâmica histórica, as instituições, os regimes políticos, as ideologias, os impérios e outros, por essa razão o Eclesiastes (qohélet) enunciou sabiamente como um dos seus temas prediletos a transitoriedade da existência (hevel; Ecl 1,2-3), o renovo delas constitui, igualmente, outra lei fundamental. Tudo se renova, o homem e o rio (Heráclito), os anos, os lugares, as pessoas, os acontecimentos, as sensações, as experiências, os sentimentos… Com similitude ao que ocorre nas mudanças de estações, as viragens de ano insuflam em nossa epiderme as sensações e aspirações mais auspiciosas possíveis. Tendo em conta, principalmente, o que significou os penosos anos de 2020 e 2021, atravessados por uma das maiores pandemias da história e, consequentemente, assinalados por perdas, aprendizagens e restrições, dentre elas, a impossibilidade de se reunir e de se aglomerar em grupos maiores, as perspectivas de 2022 – mesmo com a temeridade provocada pela nova cepa do coronavírus Sars-CoV-2, a Ômicron, pelo surto de gripe, pelo assolamento das enchentes em boa parte do Brasil e pelos nossos grandes problemas sociais – parecem bem melhores. Luzeiros de esperança reacendem para a humanidade, embora as obscuridades a vencer, fronteiras a cruzar e barricadas a derrubar sejam salientes. No pórtico das perspectivas esperançadas da humanidade encontra-se o pontificado profético do Papa Francisco, com seus escritos, pensamentos, ações e significados. Atenhamo-nos, em particular, à algumas ideias gerais da encíclica Fratelli Tutti, publicada em outubro de 2020, como confluência de boa parte do seu pontificado. Para melhor reluzir as ideias a perscrutar, é pedagógico elencar o que deve ser deixado para trás, nossas obscuridades.
Necessitamos abandonar tudo o que é empecilho ao desenvolvimento da fraternidade universal, “as sombras de um mundo fechado”, por vezes, transvestidas sedutoramente de ideias novas: os nacionalismos ressentidos e agressivos, cooptando seguidores por intermédio de uma dieta de ódio: nós contra eles; as ideologias fechadas, cegas a horizontes mais amplos e arejados; a globalização fria e indiferente, compreendida unilateralmente pelo viés economicista; a perda do sentido histórico em nosso tempo, como se tudo começasse sem nenhuma referência ao passado, criando o desenraizamento cultural; a ausência de um projeto geral que englobe a todos e leva, consequentemente, líderes políticos a alimentarem-se de polarizações e rivalizações; o descarte do ser humano na civilização da técnica e o engendramento da “era pós-humanista”; a manutenção do racismo no tecido cultural; a redução dos direitos dos trabalhadores na economia neoliberal levada a cabo pela desregulamentação e flexibilização das leis trabalhistas; a universalidade dos Direitos Humanos ainda insuficiente em muitos países do mundo; as violências, os conflitos étnicos e políticos, deflagrando quase uma terceira guerra mundial experienciada em pedaços; o drama dos refugiados (conforme relatório da ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, em junho de 2021, são 82,4 milhões de refugiados no mundo); a ilusão da comunicação: embora a tecnologia aplicada à comunicação e a era digital tenham encurtado distâncias e criado processos novos, não têm sido suficientes para criar pontes, fraternidade/sororidade; experimentamos o acúmulo de informações, mas carecemos de sabedoria para discerni-las em favor das melhores escolhas. Diante das sombras de um mundo fechado, urge “reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras” (Fratelli Tutti, n. 6). Quais são as ideias alvissareiras, capazes de engendrar uma humanidade nova?
O Papa Francisco apontou na Fratelli Tutti alguns caminhos benfazejos para inspirar o sonho da fraternidade universal e embalar, na esperança, nossas aspirações e perspectivas de um mundo novo: a inspiração do “Bom Samaritano” para a superação das barreiras e muros que impedem o amor ao próximo; a valorização da alteridade e da dimensão comunitária do ser humano como contraponto ao individualismo contemporâneo; a necessidade de pensar e gerar um mundo aberto, para além dos nacionalismos, ideologias fechadas e populismos; o valor do colóquio e do respeito às diferenças como paradigma de novas relações entre povos, grupos, nações e religiões, e construção da cultura do encontro e da amizade social na sociedade pluralista; a urgência de uma política mais abrangente, não submissa à economia e uma economia não subserviente ao paradigma tecnocrático; a denúncia como injusta a todo tipo de guerra, mesmo diante dos argumentos mais persuasivos; a necessidade de repensar as instituições internacionais em sua autonomia e capacidade de cumprir as finalidades propostas; a inclusão e valorização dos movimentos sindicais e populares nas discussões sobres as questões relevantes da humanidade; o contributo das tradições religiosas, com seus valores e espiritualidade, em vista da paz e da amizade social; o cultivo de um coração aberto, capaz de acolhimento aos mais pobres e de cuidado com a “lar comum”. Enfim, a Fratelli Tutti é um convite à esperança: “Convido à esperança que ‘nos fala de uma realidade cuja raiz está no mais fundo do ser humano, independentemente das circunstâncias concretas e dos condicionamentos históricos em que vive. Fala-nos de uma sede, de uma aspiração, de um anseio de plenitude, de vida bem-sucedida, de querer agarrar o que é grande, o que enche o coração e eleva o espírito para coisas grandes, como a verdade, a bondade e a beleza, a justiça e o amor. (…) A esperança é ousada, sabe olhar para além das comodidades pessoais, das pequenas seguranças e compensações que reduzem o horizonte, para se abrir aos grandes ideais que tornam a vida mais bela e digna’. Caminhemos na esperança!” (Fratelli Tutti, n. 55).