Cardeal Tempesta: Rumo a uma humanidade desarmada e desarmante

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A primeira Mensagem para o Dia Mundial da Paz do pontificado de Sua Santidade, o Papa Leão XIV, intitulada “A paz esteja com todos vós. Rumo a uma paz desarmada e desarmante” não é apenas um apelo circunstancial diante dos conflitos que flagelam o globo, mas um verdadeiro tratado de antropologia cristã.

Cardeal Orani João Tempesta, O. Cist. – Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ

Ao celebrarmos a Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus, pórtico de entrada de um novo ano civil, a liturgia nos coloca diante do mistério da Encarnação como a fonte primaz da paz verdadeira. É sob este horizonte teológico e mariano que a Igreja no Rio de Janeiro e no Brasil acolhe, com filial obediência e profundo sentido de responsabilidade eclesial, a primeira Mensagem para o Dia Mundial da Paz do pontificado de Sua Santidade, o Papa Leão XIV. Intitulada “A paz esteja com todos vós. Rumo a uma paz desarmada e desarmante” – o documento, publicado no dia 18 de dezembro de 2025, não é apenas um apelo circunstancial diante dos conflitos que flagelam o globo, mas um verdadeiro tratado de antropologia cristã que nos convida a revisitar as bases ontológicas da convivência humana.

O Santo Padre, dando continuidade ao rico magistério petrino que, desde São Paulo VI em 1968, sempre zelou pela tranquillitas ordinis (a tranquilidade da ordem), propõe-nos um binômio desafiador para este tempo de transição e esperança: a paz deve ser, simultaneamente, “desarmada” e “desarmante”. Esta proposição nos obriga a uma reflexão que transcende a análise geopolítica para tocar o cerne do ser cristão e a estrutura de nossas sociedades urbanas.

Primeiramente, meditemos sobre a profundidade do conceito de “paz desarmada”. Em um mundo marcado pela lógica da dissuasão, onde a segurança das nações e até mesmo a segurança individual é confiada à capacidade de ferir e aniquilar o outro, o Papa Leão XIV nos recorda a kénosis de Cristo (cf. Fl 2, 7). O Verbo de Deus, ao ingressar na história humana, não o fez montado em carruagens de fogo ou protegido por legiões celestes visíveis. Ele despojou-se de sua grandeza terrível para se expor na fragilidade de uma criança em Belém, subordinado e vulnerável. Deus desarmou-se voluntariamente para que o homem, ferido pelo pecado, não tivesse medo de se aproximar d’Ele.

Esta “paz desarmada” do presépio confronta diretamente a “paz armada” do mundo. A paz sustentada pelo medo da retaliação, pelo equilíbrio de arsenais nucleares ou pela sofisticação de ataques cibernéticos é uma paz falsa, uma quimera instável. Como nos adverte o Pontífice, tal estrutura consome recursos preciosos que deveriam ser destinados ao desenvolvimento integral dos povos, à saúde e à educação. A verdadeira paz não pode conviver com o terror; ela exige a confiança mútua, algo que as armas jamais poderão construir.

Para nós, que vivemos a realidade complexa e desafiadora de uma metrópole como o Rio de Janeiro, o conceito de “paz desarmada” ecoa com uma urgência gritante e dolorosa. Nossa “Cidade Maravilhosa” tem sido, demasiadas vezes, palco de uma guerra não declarada, onde a vida é banalizada e territórios são segregados pelo poder de fogo. Não podemos ler a mensagem de Leão XIV como uma abstração distante; ela fala diretamente à nossa realidade e às nossas comunidades eclesiais.

Ao longo do último ano, testemunhamos mais uma vez o sofrimento de famílias dilaceradas por balas “perdidas” — que sempre encontram corpos inocentes —, o luto de mães que perdem seus filhos para facções e o medo que paralisa o direito de ir e vir do cidadão de bem; sem falar na dor das famílias dos nossos agentes de segurança, trabalhadores que perderam suas vidas em nome da segurança de todos. Diante deste cenário, a proposta de uma paz “desarmada” não é uma ingenuidade sociológica ou um convite à impunidade. Pelo contrário, é o reconhecimento lúcido de que a violência gera uma espiral mimética de destruição que a força bruta, por si só, é incapaz de estancar.

Temos defendido incansavelmente que a segurança pública é um direito inalienável do povo e um dever do Estado. No entanto, a mensagem pontifícia nos ilumina a compreender que a segurança não se constrói apenas com o policiamento ostensivo ou com o aumento do calibre das armas. O verdadeiro desarmamento social começa com a presença do Estado através de escolas de qualidade, saneamento, cultura e oportunidades de emprego. Uma cidade “desarmada” é uma cidade onde a justiça social removeu a necessidade do conflito.

O Santo Padre é cirúrgico ao apontar que o desarmamento material deve ser precedido pelo desarmamento ética e do coração. Enquanto houver “armas” em nossos discursos, em nossas posturas ideológicas polarizadas, na intolerância religiosa e em nossa indiferença para com a miséria alheia, os fuzis continuarão a achar mãos dispostas a dispará-los. A paz desarmada exige a coragem de romper com a dialética do inimigo, vendo no outro — mesmo naquele que errou — não uma ameaça a ser eliminada, mas um ser humano a ser resgatado e reintegrado.

Em segundo lugar, o Papa introduz a dimensão da “paz desarmante”. Aqui reside a novidade profética e proativa deste novo pontificado. A bondade, a verdade e a beleza possuem uma autoridade intrínseca capaz de “desarmar” a agressividade alheia. O ato de oferecer a outra face, ensinado pelo Mestre Jesus, não é passividade ou covardia; é uma atitude ativa e corajosa que retira do agressor a justificativa para a continuidade da violência. Uma paz desarmante é aquela que constrange o mal pela superabundância do bem.

Como aplicar isso em nossa Arquidiocese? Somos chamados a ser uma presença desarmante nos ambientes de tensão. Nossas paróquias, movimentos e novas comunidades devem ser oásis de acolhida onde a lógica da violência fica do lado de fora. Quando a Igreja entra em lugares onde o poder público muitas vezes não chega, levando a caridade, o reforço escolar ou a assistência espiritual, ela está “desarmando” o ódio. Cada criança que seguramos na mão através de um projeto social é uma arma a menos apontada para a sociedade no porvir.

O Papa Leão XIV também nos alerta, com a sabedoria de quem perscruta os sinais dos tempos, sobre os novos desafios tecnológicos. A inteligência artificial e os algoritmos, se não submetidos a uma “algorética” humanista, podem criar sistemas de morte autônomos e amplificar o ódio nas redes sociais, criando “bolhas” de intolerância que transbordam para as ruas. Diante disso, a presença cristã deve ser “desarmante”: devemos humanizar a técnica, inserindo nela o “coração” que a máquina jamais terá. A nossa caridade social e a nossa unidade eclesial devem ser tão evidentes que “desarmem” o ceticismo e o cinismo do mundo contemporâneo.

Ao iniciarmos o ano civil de 2026, colhendo os frutos espirituais do Jubileu da Esperança e vivendo o luto transformado em gratidão pela vida do Papa Francisco, somos convocados a ser arquitetos desta paz. Não podemos esperar que ela venha pronta, assinada em tratados internacionais, se ela não for gestada no útero de nossas famílias e na concretude de nossos bairros.

O Rio de Janeiro tem vocação para a paz e para a beleza. Que o Cristo Redentor, de braços abertos sobre a Guanabara — a imagem perfeita de um Deus desarmado e acolhedor —, nos inspire. A paz desarmada começa quando depomos a arma do julgamento temerário em nossas casas. A paz desarmante acontece quando o nosso perdão é maior que a ofensa recebida.

Que Maria, Rainha da Paz, que segurou em seus braços o Príncipe da Paz totalmente subordinado, interceda por nós. Que o luminoso magistério do Papa Leão XIV encontre solo fértil em nossos corações cariocas e brasileiros, para que, depostas as armas do ódio, do medo e do egoísmo, possamos caminhar juntos na construção da civilização do amor, onde a justiça e a paz se abraçarão.

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