A festa de Nossa Senhora Rainha, no dia 22 de agosto, que marca o fim da Oitava da Assunção, oferece uma oportunidade para refletir sobre o apego dos libaneses à Santíssima Virgem. Para cristãos e muçulmanos, a espiritualidade mariana é uma fonte de proximidade com Deus e de conforto diante das adversidades vividas no País dos Cedros, especialmente a recente catástrofe no porto de Beirute.
Cyprien Viet – Vatican News
O Líbano continua a curar suas feridas após a explosão que devastou o porto de Beirute em 4 de agosto, matando mais de 180 e ferindo 6.500. Trinta anos após o fim da guerra civil, o País dos Cedros continua extremamente frágil, e esse acidente se soma a uma longa série de tragédias e dificuldades frequentemente ligadas a pressões externas.
No entanto, quer na história como nos dias atuais, o povo libanês tem demonstrado sua resiliência, sua capacidade de se recuperar, de reconstruir. A motivação para esse impulso é frequentemente encontrada na fé profunda de muitos libaneses. Tal como o apego a São Charbel -cuja influência no Líbano é comparável à do Padre Pio na Itália – a piedade mariana constitui um forte vínculo para além das fronteiras confessionais entre cristãos e muçulmanos.
Muitos libaneses dedicam intensa devoção à Virgem Maria, representada em muitos lugares, nas ruas, nas casas e, claro, nas igrejas e santuários. As múltiplas tragédias vividas pelo Líbano ao longo das décadas, desde a fome de 1915-1918 até a guerra de 1975-1990, não impediram os libaneses de recorrer a Maria para se reaproximar de Deus.
Maria, fonte de consolo nos desastres
Os eventos recentes também demonstram esse alicerce espiritual dos libaneses. O trauma da explosão de 4 de agosto continua fortemente sentido entre a população do Líbano, mas muitos residentes de Beirute se consideram miraculados. De fato, o balanço patrimonial poderia ter sido muito mais pesado, dado o poder da explosão e da onda de choque que varreu a capital. Muitos afirmam ter sido protegidos pela Virgem Maria, e até mesmo alguns daqueles que sofreram ferimentos, tristeza e perda material veem Maria como uma mediadora da cura e consolação divinas.
Pascale Debbane trabalha habitualmente no Vaticano como coordenadora para o Oriente Médio da Seção “Migrantes e Refugiados” do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral. Retornando no verão ao seu Líbano natal, pode sentir na própria pele as consequências da catástrofe. Seu apartamento no bairro cristão de Achrafieh foi devastado pela explosão e vários de seus amigos ficaram feridos.
“Eles foram muito afetados. Demorou cinco horas para chegarem a um hospital, e um deles perdeu muito sangue, tiveram que carregá-lo para chegar ao hospital, conta emocionada. E no dia seguinte, enquanto limpava o sangue que estava em meu apartamento, me veio a cena da “Paixão de Cristo” quando Maria enxuga o sangue de Jesus, após ser açoitado, durante sua Paixão. E imediatamente, porque eu estava rezando enquanto limpava o sangue, pedi ao Senhor que unisse este sangue com o Seu sangue, para que pudéssemos experimentar uma verdadeira Ressurreição para o Líbano”.
Este termo de “Ressurreição” surge nas frases de muitos libaneses, cansados de tantas catástrofes, colapso econômico e estagnação institucional, mas que ainda amam sua nação e querem reconstruí-la, devolver a ela a dignidade e o orgulho, na continuidade de dois milênios de inscrição do cristianismo em uma “alma libanesa” que sobreviveu a terremotos, guerras, invasões, crises de todos os tipos.
Uma devoção mariana enraizada na tradição bíblica
O Líbano, uma terra mencionada 72 vezes na Bíblia, é considerada uma Terra Santa porque seus caminhos foram percorridos por Jesus. Se houver dúvidas sobre a localização precisa do episódio das Bodas de Caná, está registrado que Cristo foi em certas ocasiões a lugares correspondentes ao atual Líbano porque os Evangelhos mencionam claramente a “Terra de Tiro e Sidon”.
Em conexão com esta fundamentação, entre os 3.000 locais religiosos que concentram o território do atual Líbano, o santuário de Notre-Dame-de-l’Attente, perto de Saida, no sul do país, foi construído perto de uma caverna onde, segundo a tradição, Maria esperava seu Filho durante suas visitas à região.
Esta dimensão da Terra Santa reivindicada pelo País dos Cedros também tem suas raízes no Antigo Testamento, em particular nesta passagem do Livro de Ben Sirac, o Sábio: “criei raízes em um povo glorioso, no domínio do Senhor, em sua herança: vivo no meio da assembleia dos santos. Subi como o cedro no Líbano, como o cipreste no monte Hermon”. Alguns Salmos e Cântico dos Cânticos também se referem ao Líbano.
A vocação do Líbano como um “país-mensagem”
O Líbano, portanto, tem uma responsabilidade específica na história da humanidade e no Plano de Deus, como um “país-mensagem”, para usar a expressão usada por São Papa João Paulo II durante sua visita a Beirute, em 1997. O Papa polonês, imbuído de espiritualidade mariana e muito sensível à mensagem de Maria durante as aparições de Fátima, multiplicou os apelos e orações pelo Líbano desde sua posse na Sé de Pedro em 1978, enquanto o país vivia uma guerra que colocava em perigo sua própria sobrevivência.
Em sua Mensagem a todos os libaneses em 1º de maio de 1984, João Paulo II confia as intenções do povo libanês à “Santíssima Virgem, invocada sob o nome de Nossa Senhora do Líbano, aquela que, de braços abertos, do monte de Harissa, oferece a todos os libaneses seu sorriso e sua ternura como um lembrete de que só o amor faz grandes coisas!”
Seu sucessor, Bento XVI, havia escolhido o Líbano para sua última Viagem Apostólica, em setembro de 2012, destacando também a figura de Maria como fonte de unidade para o povo libanês. “Do alto da colina de Harissa, Ela vos protege e acompanha, vela como uma mãe sobre todos os libaneses e tantos peregrinos que vêm de toda a parte para Lhe confiar as suas alegrias e penas. Nesta tarde, confiamos à Virgem Maria e ao Beato João Paulo II, que esteve aqui antes de mim, as vossas vidas, as de todos os jovens do Líbano e dos países da região, especialmente aqueles que sofrem por causa da violência ou da solidão, aqueles que precisam de conforto. Deus vos abençoe a todos!”, confidenciou na sua saudação aos jovens.
O Papa Francisco, que ainda não esteve lá, também se referiu com assiduidade ao lugar específico de Maria no coração dos libaneses, como aqui durante um apelo lançado em outubro de 2019, no contexto dos protestos que exigiam a queda do governo: “Rezo à Virgem Maria, Rainha do Líbano, para que, com o apoio da comunidade internacional, este país continue a ser um lugar de convivência pacífica e de respeito pela dignidade e liberdade para todos, no interesse da região do Oriente Médio”, disse na ocasião.
Um país que deve sua unidade a Maria
Para muitos libaneses, a própria existência deste país está ligada à figura de Maria. Os marcos colocados ao longo da história foram numerosos. Foi, por exemplo, por ocasião do quinquagésimo aniversário da proclamação do dogma da Imaculada Conceição pelo Beato Papa Pio IX em 1854, quando foi tomada em 1904 a decisão da construção do Santuário de Notre-Dame-du-Liban na colina de Harissa, que foi inaugurado quatro anos depois, em um território ainda sob domínio otomano.
Cinquenta anos mais tarde, no marco do Ano Mariano de 1954, o Papa Pio XII envia uma calorosa mensagem aos participantes do Congresso Nacional Mariano organizado em Beirute. “Tal piedade mariana é um penhor de esperança para o seu querido país”, exulta o Pontífice. Evocando o nome de Nossa Senhora do Líbano dado ao Santuário de Harissa, Pio XII explica então que este título “fará lembrar o lugar soberano de Maria nos destinos de sua pátria, e ela será, nas horas escuras, o para-raios celestial que desviará de seu céu as nuvens de discórdia ou divisão que tentarão obscurecê-lo”.
A existência do Líbano está ligada à sua responsabilidade espiritual
Hoje, no Líbano, a devoção mariana não é considerada uma forma de oração ultrapassada ou reservada aos idosos. Ao contrário, muitos jovens usam medalhas e rosários e vivenciam o apego a Maria diariamente. Enquanto no resto do mundo, e especialmente no Ocidente, muitas pessoas estão se afastando da piedade mariana, fenômeno oposto é observado no Líbano, com um ressurgimento da participação em peregrinações locais ou internacionais, notadamente em Roma, Lourdes, Fátima e Medjugorje, mas também a formação de muitos grupos de orações do Rosário. Em 2010, um vasto consenso político e social acompanhou a instituição da data da Anunciação como feriado nacional, reunindo cristãos e muçulmanos em torno de Maria.
“O dia 25 de março é uma festa nacional que une todos os libaneses em torno de sua Mãe Celestial”, explica Adeline Khouri, uma jovem engenheira muito ligada à oração do Rosário. O Líbano é uma mensagem na vitória da vida comunitária, do amor, da paz, dos valores. É graças a Maria que o Líbano poderá transmitir a sua mensagem ao mundo e cumprir a sua missão, a missão específica que Deus pediu ao Líbano”.
A consagração do Líbano ao Imaculado Coração de Maria, em junho de 2013, também foi uma oportunidade para fortalecer a consciência de uma especificidade libanesa dentro de um espaço fraturado do Oriente Médio, e marcado em particular por um conflito extremamente violento entre o grande vizinho sírio.
O fato de o Líbano ter resistido às tentativas de intrusão do Daesh e preservado sua soberania e paz, embora de forma precária e relativa, é visto por muitos como um milagre. A geopolítica, de fato, não pode por si só explicar a sobrevivência de um Estado tão frágil, pequeno e com poucos recursos materiais. A existência do Líbano está, portanto, intimamente ligada à fé. A energia espiritual dos libaneses deu-lhes a força para resistir à desestabilização externa e desenvolver um senso de solidariedade que também é expresso na diáspora libanesa em todo o mundo.
Maria, mãe de todos os que buscam a Deus
Irmã Marie-Raymonde Alam, fundadora do Movimento À toi Marie e antiga responsável pela acolhida de peregrinos de língua francesa em Medjugorje, tem propagado a devoção mariana por quase 20 anos em paróquias, famílias e comunidades no Líbano. Atualmente, ela organiza a construção de uma Cidade mariana na Diocese de Jounieh, a poucos quilômetros de Beirute, querendo transformar este lugar em um sinal de reconstrução, unidade e paz para o porvir do Líbano.
Comovida com o sacrifício dos salvadores, muitos dos quais perderam a vida no acidente de 4 de agosto e agora são considerados “almas sagradas”, a religiosa explica que a resiliência e a cura dos libaneses estão enraizadas em sua fé e na sua devoção mariana.
“Para nós, libaneses, o Senhor é nossa força, nosso apoio, nosso pastor, nossa segurança. Vimos isso ao longo dos anos de guerra. Fomos protegidos, amparados pela graça de Deus. Quantas vezes quase morremos e por um milagre fomos salvos! O libanês realmente conta com o Senhor, ele se apoia em seu Deus, se apoia na Santíssima Virgem”, insiste, destacando que apesar de toda corrupção, de toda violência, de todos os pecados que ferem o coração de Libanesa, grande parte da população permanece aberta à graça de Deus, com a mediação de Maria.
E essa unidade do povo libanês em torno de Maria, além das fronteiras confessionais, às vezes encontra ilustrações surpreendentes, como prova esta história contada pela irmã Marie-Raymonde: “Yahia é uma amiga muçulmana, libanesa, e um dia ela ‘ligou de manhã cedo e disse-me: “Levanta os teus olhos para o céu e dá graças a Deus”. Então eu disse a ele: “Mas por que Yahia, por que você está me ligando tão cedo?” Ele me disse: “Eu fiz um voto à Santíssima Virgem, e rapidamente se cumpriu. Prometi à Santíssima Virgem dar-lhe um automóvel para que você pudesse ir à Missa de todos dias.” E o automóvel era um Fiat, como o “Fiat” de Maria, e com chave azul! Amém! Obrigada Senhor, grandeza a Deus!”, exclama a irmã agradecida.
Sinal do humor e do amor de Deus, esta história prova talvez melhor do que qualquer sinal espetacular em que medida o País dos Cedros, para além dos seus dramas e crises, continua a ser uma terra onde o sopro de Deus se enraizou no coração dos fiéis que, sob a proteção de Maria, se colocaram à disposição para acolher a graça e uma fraternidade radical. achar em Maria uma Mãe comum permite, assim, reconhecer-se como irmãos e irmãs, unidos por um destino comum a construir juntos.