Escravidão como tema na ordem do dia

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Aconteceu há precisamente 581 anos. Era 8 de agosto de 1444. Em Lagos, sul de Portugal, dava-se o primeiro mercado de africanos escravizados. Seria o modelo para muitos outros que mancharam ao longo de séculos a história da Humanidade. Hoje é um dos lugares visitados pelo Coletivo Tributo aos Ancestrais e constitui um dos pontos de reflexão histórico/crítico com vista na reparação, verdade e reconciliação para um mundo melhor. Também o 23 de agosto vai neste sentido. Saiba mais…

Dulce Araújo – Vatican News

O mês de agosto apresenta duas datas importantes relacionadas com o tema da escravidão. Antes de mais, o dia 8, que marca o aniversário do primeiro mercado de pessoas escravizadas, ocorrido em 1444. Foi em Lagos, no sul de Portugal. Por outro, 23 de agosto é, desde 1998, por vontade da UNESCO, Dia Internacional de Memória do Tráfico Negreiro Transatlântico e da sua Abolição.

Em volta destas duas datas, o programa “África em Clave Cultural: personagens e eventos” teceu, na sua edição de quinta-feira 7/8/25, algumas considerações acerca da questão da escravatura. O parceiro do programa, Filinto Elísio (poeta, ensaísta, editor – Rosa de Porcelana Editora) põe em realce, na sua crónica, diversos elementos e sublinha que a reflexão e o debate estão abertos no sentido de universalizar a crítica em relação a essa melancólico página histórica da Humanidade e de inspirar as gerações futuras para o respeito da dignidade humana (lei em baixo a crónica).

Convidado a contextualizar o ocorrido em Lagos, o historiador guineense, José Lingna Nafafé, Professor Catedrático Associado na Universidade de Bristol (Inglaterra) classifica esse primeiro leilão de  africanos, como o “modelo” de mercados que viriam a seguir-se por várias partes da Europa e elucida os meandros históricos que lhe estão na base e como evoluíram.

Quanto ao papel da Igreja na questão da escravatura, fala em dualidade (licença a Portugal para conquistas e escravizações e evangelização), mas não deixa de salientar que houve, por exemplo, capuchinhos que se levantaram em defesa da dignidade dos negros.

Na perspetiva da construção de um mundo melhor para todos, Nafafé considera ser necessário falar abertamente, deixar a África exprimir-se sobre o ocorrido, sem complicar os estudos. Enfim, é preciso ir na direção da “verdade e reconciliação”, aprova.

Já Aristóteles Kandimba, escritor angolano, fundador do Coletivo Tributo aos Ancestrais/Portugal, dá a conhecer as iniciativas do ano passado (580º aniversário do mercado de Lagos) e este ano para homenagear os africanos que se viram nessa terrível condição de vítimas da escravidão. Uma iniciativa em conjunto com a Arqueóloga Vicky Olze e a National Geographic.

Recorde-se que em 2009, durante a construção de um parque de estacionamento em Lagos, foram descobertas mais de 150 ossadas que estudos posteriores revelaram ser de africanos e de estarem ligadas ao melancólico mercado de escravizados que ali teve início no século XV.

Créditos das fotos: José Sarmento de Matos/National Geographic (no Buala.org) 



Cortejo do Coletivo Tributo aos Ancestrais ao Parque de Estacionamento em Lagos

Homenagem às vítimas do Tráfico Transtlâncio - Lagos, Portugal

Homenagem às vítimas do Tráfico Transtlâncio – Lagos, Portugal

Programa “África em Clave Cultural: personagens e eventos”

Crónica

Escravidão como tema na ordem do dia

23 de agosto é considerado pelas Nações Unidas, como o Dia Internacional em Memória do Tráfico de Escravos e da sua Abolição. A data faz tributo à memória de homens e mulheres que “se revoltaram em Santo Domingo, hoje Haiti, em 1791, abrindo caminho para o fim da escravidão e da desumanização”.   

O Haiti tornou-se um marco, a primeira república governada por descendentes de africanos, um momento da história universal que deve servir de lição para “desconstruir os mecanismos retóricos e pseudocientíficos” que viabilizaram o crime da escravatura e da escravidão.   

A UNESCO preconiza o desenvolvimento do projeto “A Rota do servo: Resistência, Liberdade, Património” como plataforma de reflexão global e coletiva sobre as causas históricas, os métodos e as consequências da escravatura como uma das grandes tragédias da Humanidade, como foi o Holocausto e os vários genocídios que perduram até aos nossos tempos.

A escravidão que vitimou milhões de africanos, como consequência da expansão mercantilista e colonialista europeia, submeteu vários povos à negação da sua própria humanidade. Este domínio estribava-se na conceção racista do mundo, desvirtuando-se todos os aspetos da atividade humana. 

Refira-se que o comércio de pessoas escravizadas no Atlântico, também chamado de Tráfico Negreiro, entre os séculos XVI e XIX, foi o maior tráfico humano da Humanidade. Tudo começou em Lagos, em Portugal, o principal ponto de entrada de escravos africanos na Europa nas primeiras décadas do Tráfico Negreiro, a partir dos anos 40 do século XV. Nessa cidade, funcionou inicialmente a feitoria dos Tratos da Guiné e a mão-de-obra cativa continuou a chegar ao seu porto até ao fim do século e mesmo depois. Em 1490 e em 1490-96 o almoxarifado da vila recebeu 739 pessoas escravizadas.

Recentemente, a UNESCO reconheceu a candidatura conjunta dos livros e registos de escravos em Angola, Moçambique e Cabo Verde. “Recenseamento de escravos em Angola, Cabo Verde e Moçambique determinado por decreto português de 14/12/1854”. Trata-se de um projeto com 79 livros de registo de escravos nestes três países, criados principalmente entre 1856 e 1875.

Para a UNESCO estes registos são sobre “uma época em que a escravidão tinha oponentes em todo o mundo” e que esses livros “forneciam registos detalhados, incluindo nomes, sexo, local de nascimento, idade, características físicas, ocupações e informações sobre proprietários de escravos”. São documentos importantes para a preservação da memória da escravatura, incentivando a investigação sobre este fenómeno nas suas diferentes vertentes.

Para se aquilatar a dimensão do comércio de pessoas escravizadas, ao longo de mais de 400 anos, um infortúnio para de mais de 12 milhões de africanos transportados para a Europa e para as Américas pelos impérios europeus durante o anterior milénio, é preciso uma imersão na História, um levantamento das verdades sobre a barbárie e considerar as formas de reparação histórica.

A reflexão e o debate estão abertos. Recorda-se, hoje, os milhões de vidas ceifadas e as consequências sobre os destinos dos continentes até aos nossos dias.

Mais do que nunca é preciso reafirmar a universalidade da crítica à escravidão e da exaltação aos princípios da dignidade humana, da liberdade e da igualdade, como fonte de inspiração para as gerações futuras.

Filinto Elísio – Rosa de Porcelana Editora

Fonte

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