O padre António Bacelar serviu o Movimento dos Focolares à volta do mundo. Passou também por Buenos Aires, destacando a sobriedade e despojamento como marcas ali deixadas por Bergoglio. Reflete sobre o legado do Papa Francisco e lança um olhar sobre o porvir da Igreja.
Rui Saraiva – Portugal
O padre António Bacelar é da diocese do Porto onde anima a paróquia da Maia. Depois de 25 anos animando o serviço diocesano da pastoral universitária rumou para Roma com a missão de acompanhar a nível mundial os sacerdotes ligados ao Movimento dos Focolares. Uma experiência de 9 anos que lhe permitiu conhecer também Buenos Aires.
Nestes dias de luto pelo Papa Francisco, em entrevista ao jornal Voz Portucalense, semanário da diocese do Porto, o sacerdote faz uma reflexão sobre o pontificado de Francisco, revelando marcas que deixou Bergoglio em Buenos Aires, refletindo também sobre o legado do Papa Francisco e lançando um olhar para o porvir da Igreja.
P: Ali ao fundo, vamos vendo um pouco de nevoeiro. São tempos difíceis para a Igreja, sempre que morre um Papa. Que legado nos deixa o Papa Francisco?
R: Antes de mais, o nevoeiro não esconde. Sabemos que está lá o mar. Como também naquele sitio há sempre o pôr do Sol, e sabemos que há o nascer do Sol no outro lado da Terra. O legado do Papa Francisco… Às vezes diz-se que para receber e acolher um Concílio é preciso um século. Um Papa que tem um papel fundamental na atuação deste Concílio Vaticano II. E penso que precisaremos, senão de um século, de algumas décadas, para perceber, também com a distância que a história nos dará, o grande legado que ele nos deixa. A grande herança, e que eu quero acreditar, e acredito que terá continuidade no curso e na história da Igreja, nas etapas que se sucederão.
P: Podemos então dizer, falou no Concílio Vaticano II, que uma das grandes preocupações do Papa Francisco foi tornar operativo o Concílio Vaticano II.
R: Sim. Repito aquilo que dizia a propósito do Concílio: um século para a sua atuação. E o Concílio foi o grande evento da Igreja no século XX, sem dúvida nenhuma. Foi atuando em tantos modos e com os pontificados admiráveis de Paulo VI, de João Paulo II. Também João Paulo I, de Bento XVI. Diria que no núcleo do Concílio, a ideia do povo de Deus, da sinodalidade e tudo o que isso significa, também, de acolhimento de todos, da proximidade, das fragilidades, do assumir plenamente a humanidade, talvez estes tenham sido tempos mais amadurecidos para que o Papa Francisco possa ter exercido o seu ministério, e possa ter dado este grande impulso, que se traduz através do Sínodo, que podemos talvez também dizer que é o maior evento após o Concílio.
P: Desta sua Diocese do Porto partiu, depois de muitos anos de trabalho com universitários. Partiu para Roma e para o mundo num serviço com o Movimento dos Focolares. E aí teve a oportunidade de estar em Buenos Aires, de contactar com o clero, com os leigos, enfim, com todo o ambiente católico, e não só, em Buenos Aires. Que marcas o Papa Francisco deixou ali como Arcebispo?
R: Penso que são tantas. Nas minhas estadias, duas, na Argentina, não foram suficientemente largas para as poder avaliar. Papa Francisco respira-se, digamos, na conversa com o povo, e com os padres, e com tantos da Igreja. E até nas coincidências de conhecer colegas de escola, ou gente que foram contemporâneos, ou que foram vizinhos e que revelavam também toda aquela sua humanidade. Buenos Aires é uma grande cidade. Foi e continua a ser um centro muito relevante para o desenvolvimento da América Latina. O Papa Francisco acompanhou, primeiro como jovem, e depois como noviço jesuíta, e como jesuíta, grandes mudanças na sociedade argentina, que marcaram também grandes contrastes, ou que foram marcadas por grandes contrastes sociais. Buenos Aires, uma cidade de primeiríssimo mundo, mas onde impressiona também o convívio com a miséria, com situações de pobreza, e saber da proximidade do Papa Francisco de todas essas situações, e por testemunhos também muito vivos, é uma grande marca. Outra marca, eu diria, que me surpreendeu digamos, que me tocou muito, é a marca também, que é visível até na Catedral. O estilo de despojamento, de sobriedade, de beleza, mas ao mesmo tempo de uma transparência também naquilo que aí existe de arte – e existe alguma coisa – que diz muito também do Papa Francisco como Arcebispo de Buenos Aires. Mas a marca, diria talvez, maior para mim, é de todo um continente. De todo um continente latino-americano, cujo episcopado, creio, seja talvez aquele mais ativo como episcopado de um mesmo continente. Celam (Conselho Episcopal Latino-Americano e Caribenho) é um nome que já todos fixaram. As conferências, as grandes assembleias da Igreja latino-americana marcam não só a história daquele continente, mas também a história da Igreja. E aí, pensar em Aparecida, pensar no documento da Aparecida, é pensar num grande apoio, numa grande coluna do pontificado do Papa Francisco, juntamente com o Evangelii Nuntiandi de Paulo VI. Penso que são as duas grandes, por ele mesmo ditas, as duas grandes fontes, também, da sua ação e da sua inspiração.
P: Partiu daí grande parte da inspiração pastoral para o pontificado que tivemos durante estes 12 anos?
R: Sobretudo nesta convicção por ele partilhada e de uma forma tão transparente e tão livre, de ser alguém conduzido, de ser alguém amado e perdoado, um pecador perdoado. E por isso, nesse sentido, atribuir, digamos, a autoria ao Espírito Santo. E, nesse sentido, não recusar tudo aquilo, não me parece que seja fruto de um sentar-se à secretária e de um pensar “como é que vai ser este pontificado”? Mas tudo aquilo que tinha vivenciado. Na sua história, e na sua formação intelectual, que por vezes não é suficientemente valorizada. E basta pensar em nomes como Romano Guardini, enquanto no mesmo pensamento ele se apoia. Na sua vastíssima cultura e formação literária, e que se exprime até num documento relativamente recente a esse propósito, e que consegue traduzir numa linguagem, de facto, acessível e que toca o coração de todos e que continuará a tocar o coração de todos. Portanto, são elementos que estão presentes na sua história, e que ele soube ler, deixando-se simplesmente conduzir, parece-me. E conduzir na relação com os outros. Num exercício muito ativo de sinodalidade e de escuta. Eu lembro-me sempre de uma das melhores definições que ouvi do Papa Francisco, logo nos primeiros meses do seu pontificado, foi do saudoso professor Adriano Moreira, que a propósito do Papa Francisco, dizia: “É um que ouve até enquanto fala”. Continua a ser para mim uma referência essa atitude real de escuta que o Papa tem, que tem muito a ver depois com o caminho juntos, com o caminho da sinodalidade.
P: A sinodalidade vai ser a marca também deste Conclave?
R: Eu espero bem que sim. E peço e rezo para que isso aconteça. E acredito que sim. Acredito que sim. Há um exercício de toda a Igreja, no exercício da escuta, da escuta do outro, da escuta uns dos outros, que é sobretudo também a escuta do Espírito Santo, e que, penso, possa atravessar também este Conclave. Até também pelo facto de uma parte muito significativa, creio que mais do que dois terços, ou mesmo mais do que isso, dos cardeais eleitores, são já da escolha do Papa Francisco. E que têm a ver penso, em boa parte ou na maioria dos casos, também com o estilo que ele imprimiu à Igreja.
O Papa Francisco faleceu no dia 21 de abril com 88 anos. Tinha completado a 13 de março, 12 anos de um pontificado marcado pelo seu empenho social e particular atenção às periferias e aos descartados da sociedade. Destaque especial para o seu dinamismo ao nível interno da Igreja, animando um processo sinodal, cuja fase de aplicação deverá durar até 2028.
Laudetur Iesus Christus