Ao longo desses 60 anos, a CF foi se tornando um caminho espiritual muito fecundo de tomada de consciência e denúncia do pecado social, de chamado à conversão social da Igreja e da sociedade e de compromisso evangélico com a construção de uma sociedade mais justa e fraterna.
Francisco de Aquino Júnior – Presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte, CE
Desde 1964, a Igreja do Brasil promove anualmente a Campanha da Fraternidade (CF). Ela acontece sempre durante a quaresma e no espírito de conversão quaresmal. É que a conversão não se restringe ao âmbito pessoal (conversão do coração), mas tem também uma dimensão social (metamorfose da sociedade). Daí que o chamado à conversão social que se dá mediante metamorfose das relações entre as pessoas e das estruturas da sociedade seja uma dimensão fundamental da fé cristã e da missão da Igreja. Daí que a CF não seja um desvio da espiritualidade e da liturgia quaresmais, mas sua expressão e concretização no campo social. Existe pecado pessoal, como existe pecado social. Por essa razão, deve haver conversão social, como deve haver conversão pessoal.
Ao longo desses 60 anos, a CF foi se tornando um caminho espiritual muito fecundo de tomada de consciência e denúncia do pecado social, de chamado à conversão social da Igreja e da sociedade e de compromisso evangélico com a construção de uma sociedade mais justa e fraterna. Ela tem despertado a comunidade eclesial para a dimensão social da fé e da evangelização. Tem se constituído como exercício da missão profética da Igreja na sociedade. E tem desencadeado uma série de iniciativas na Igreja e na sociedade de afirmação da dignidade humana, de conquistas de direitos sociais e de cuidado da lar comum que são autênticos sinais e mediações do reinado de fraternidade, justiça e paz anunciado e inaugurado por Jesus de Nazaré.
A cada ano, a CF aborda um problema que ameaça a fraternidade e clama por conversão. Num contexto generalizado de polarização, ódio, fake news e agressão, e em sintonia com a Carta Encíclica do Papa Francisco Fratelli Tutti (Todos irmãos), a CF 2024 tem como tema: “fraternidade e amizade social” e como lema: “vós sois todos irmãos e irmãs” (Mt 23,8). Em meio a tanta inimizade, violência e tirania, o desafio é cultivar a fraternidade entre as pessoas, entre os grupos, nas redes sociais digitais, nas igrejas, mas também na política e na economia que devem estar a serviço do bem comum.
Francisco apresenta sua Carta Encíclica Fratelli Tutti “como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras”. Ela está estruturada a partir do contraste entre as “sombras de um mundo fechado” (lógica do individualismo) e o desafio e a tarefa de “pensar e gerar um mundo aberto” (lógica da fraternidade).
Também o Texto Base da CF 2024 faz um “diagnóstico” da situação atual e indica o “remédio” para o tratamento de seus males.
Por um lado, chama atenção para os sinais de inimizade em nossa sociedade: divisão, desigualdade, exclusão. Fala de uma espécie de “síndrome de Caim”, na qual, “não só não nos sentimos mais responsáveis uns pelos outros, como também […] desejamos que as pessoas que pensam diferentemente de nós desapareçam, isto é, sejam na prática exterminadas”. E apresenta como causa fundamental dessa situação o “hiper individualismo” que produz verdadeira “alterofobia”, isto é, medo, rejeição, aversão e vontade de eliminar quem é diferente de mim, gera uma “cultura dos muros” e repercute também na política e na economia.
Por outro lado, fala da “amizade social” como “remédio” contra essa “pandemia sociocultural que clama por metamorfose e conversão à luz da fraternidade nascida do Evangelho”. E destaca alguns “sinais que suscitam e sustentam a amizade social” em nossa sociedade: possibilidades de colóquio e conexão nas tecnologias de comunicação; disposição para a solidariedade; sadia e complementar pluralidade; pessoas que com seu trabalho se colocam a serviço dos outros; movimentos sociais, associações comunitárias, iniciativas de mediação de conflito e grupos de entreajuda; atuação profética do Papa Francisco e a prática das comunidades eclesiais.
Só se pode curar a “síndrome de Caim” com “fraternidade e amizade social”. O desafio é passar de um “mundo fechado” (lógica do individualismo) para um “mundo aberto” (lógica da fraternidade). Isso abrange todos os níveis de nossa vida: pessoal, familiar, eclesial, cultural, social, político, econômico. Isso é tarefa de todos: pessoas, Igrejas, sociedade. E, em última instância, é obra do Espírito de Deus que nos faz irmãos e nos compromete na construção de uma sociedade mais justa e fraterna.
– Francisco de Aquino Júnior – Presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE; professor de teologia da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).