A cada ano a Igreja do Brasil nos propõe uma Campanha da Fraternidade (CF) no período da Quaresma. Trata-se de uma exigência prática de conversão na qual se procura contemplar os mistérios da Paixão de Jesus na paixão do povo ou da natureza, nos dias de hoje. Ou seja, os sofrimentos do Jesus histórico nos leva a recriar suas ações e decisões diante dos sofrimentos de hoje.
Embora seja uma proposta da Igreja Católica no Brasil, trata-se de uma Campanha aberta a toda pessoa de boa vontade e sensível aos desafios que afetam nossa sociedade. Em especial para os cristãos, há o anseio de que toda a Igreja possa vivenciar, refletir, rezar o tempo sagrado da Quaresma como um grande retiro espiritual. Urge recordar que a própria Liturgia quaresmal nos convida a fazer uma viagem ao nosso interior, saindo de uma prática religiosa ritualista, para celebrar a fé, no altar do coração. “Rasgai os vossos corações e não as vossas roupas!” (cf. Jl 2, 12-18).
A dura realidade da fome
Esta já é a terceira vez, que a CF propõe o tema da fome. Em 1975 o tema foi “Repartir o pão!” No ano de 1985: “Pão para quem tem fome!” No final do ano passado, o Congresso Eucarístico Nacional de Recife (11-15/11/2022) teve como tema “Pão em todas as mesas”. Seguindo na mesma linha a CF 2023 se debruça sobre o tema “Fraternidade e Fome”. É sinal de que a fome continua sendo um desafio gritante em nossa sociedade.
Seguindo o método Ver-Julgar-Agir, o Texto Base da CF 2023 nos aponta que “A fome no Brasil é um escândalo! Um escândalo de proporções inimagináveis. Em nosso País, há 125,2 milhões de brasileiros que nunca sabem quando terão a próxima refeição” (TB 31). Por isso o Tema desta CF é “Fraternidade e Fome”. E o lema é: “Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14, 16) Dentro da mística da conversão pessoal, comunitária e social, a CF 2023 nos incentiva a buscar atitudes evangélicas, humanitárias, solidárias, não só para matar a fome, mas também para atingir as suas causas. Identificar os mecanismos que estão produzindo fome e levando à morte pela subnutrição.
Que a CF 2023 seja abraçada pelos cristãos e pelas pessoas de boa vontade com muito afeto, como um gesto concreto a favor da vida! Que esta CF nos leve a ter a compaixão de Jesus e a obedecer à sua ordem: “Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14, 16). Que haja pão e justiça, para todas as pessoas!
Fome: um problema social e coletivo
A CF 2023 nos recorda que no Brasil “a fome não é apenas um problema ocasional; é um fenômeno social e coletivo, estrutural, produzido e reproduzido no curso ordinário da sociedade, que normatiza e naturaliza a desigualdade, é um projeto de manutenção da miséria em vista de perpetuação de algumas classes no poder. Já afirmava a nossa escritora Carolina Maria de Jesus: ‘quem inventou a fome são os que comem’” (TB 30).
Para se ter uma ideia disso, em 1960, para cada rico no mundo, havia 30 pobres; hoje, para cada rico, há 80 pobres. O período da pandemia ampliou o abismo entre ricos e pobres. Desde março de 2020, o país ganhou 10 novos bilionários. Multinacionais e bancos ampliaram abusivamente seus lucros. A riqueza dos bilionários cresceu 30%, enquanto 90% da população empobreceram de 2019 a 2021. Os bilionários cresceram mais durante a pandemia que nos últimos 14 anos.
O cenário atual da fome no Brasil indica que 6 de cada 10 pessoas, ou 125 milhões da nossa população, enfrentam diariamente dificuldades para se alimentarem e 12% dos brasileiros vivem em situação de insegurança em relação à água. Onde falta água, a fome é ainda mais dura.
As graves crises políticas, a tirania e a falta de uma distribuição dos recursos naturais fazem morrer de fome milhões de crianças, já reduzidas a esqueletos humanos. O ser humano é considerado um bem de consumo, que se “usa e jogar fora”; assim teve início a “cultura do descartável”, que chega a ser promovida. Isso é sintoma de tirania social, de uma economia que mata. Os excluídos não são explorados, mas resíduos, “sobras” humanas (EG 53).
A CF 2023 nos leva a contemplar Jesus sendo crucificado pela fome em milhões de brasileiros e de pessoas espalhadas pelo mundo. Somos chamados a celebrar a Páscoa de pão, vida e dignidade para todos e todas. Afinal, Jesus veio “para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10, 10) Abraçar a CF 2023 é levar a sério a proposta de vida de Jesus e a ordem dada a seus discípulos: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14, 16).
As causas da fome
Existem quatro causas principais da fome: conflitos armados, choques climáticos, choques econômicos e choques sanitários. Atualmente estamos vivendo uma verdadeira “tempestade”; em alguns lugares do mundo, estes quatro fatores estão acontecendo ao mesmo tempo.
No Brasil, com 214 milhões de habitantes, mais da metade (58%), ou seja, 125 milhões convivem com alguma forma de insegurança alimentar que pode ser leve (quando há incerteza próxima), moderada (quando a quantidade é insuficiente) e grave (quando há privação e fome). Mais de 33 milhões (15,5%) de pessoas enfrentam a fome em nosso país (TB 40). Mais de 800 milhões de pessoas passaram fome no mundo em 2021.
Em linhas gerais o Texto Base da CF 2023 nos aponta que a fome tem cor, gênero, raça, pois as mulheres e pessoas negras sofrem mais (TB 41). Os pobres são as grandes vítimas da fome e, além da fome, vem o desafio da subnutrição que diminui a resistência às enfermidades e atinge, sobretudo, as crianças, as mulheres grávidas ou em período de amamentação, os enfermos e pessoas idosas (TB 44).
Dai-lhes vós mesmos de comer
Diante da multidão, Jesus se encheu de compaixão. Ele é o pastor que ama, tem afeto, cuida de seu povo. Ter compaixão vai além do sentimento, é uma ação solidária e libertadora em socorro a quem sofre. Por isso, Jesus cura os enfermos e anuncia ao povo a boa nova do Reino. Já os discípulos, que ainda não agiam com a mesma compaixão e solidariedade, querem despedir a multidão. Os discípulos procuram fugir do problema e dar o povo à própria sorte (Mt 14,15). Jesus devolve aos discípulos a responsabilidade de ajudar a resolver o problema da fome: “Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14, 16)
Os discípulos, envergonhados, sinalizam que a comida é pouca: “Só temos aqui cinco pães e dois peixes” (Mt 14, 17). Jesus aponta que a solução da fome começa com a partilha: “trazei-os aqui!” (Mt 14, 18). “O pouco com Deus é muito”. Os seguidores de Jesus têm a missão de ajudar a resolver o problema da fome. Não podemos fechar os olhos e negar essa dura realidade diante de nós. A atitude de Jesus com os discípulos nos compromete com a busca de solução para a fome de pão, de justiça, de partilha e comunhão. Nós temos responsabilidade sobre o destino do mundo. O que podemos fazer para que o mundo seja mais justo, fraterno, humano e de paz? (TB 28).
A CF 2023 faz vir à tona o problema da fome, pois quando não se fala, parece que a fome não existe. Daí a importância dos organismos de pesquisa que nos fazem olhar para a realidade. Não raro, queremos fugir a essa responsabilidade: “Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14, 16) Não há solução para a fome apenas por meios assistencialistas com doações de cestas básicas e distribuição de quentinhas nas ruas e viadutos. Sem políticas públicas que priorizem o combate à fome e às injustiças, que gerem emprego, veremos perpetuar o problema da fome.
Para o combate à fome, um passo indispensável é criar ou reativar os COMSEAs (Conselhos Municipais de Segurança Alimentar) e fazer deles o instrumento de políticas públicas para a superação da fome (TB 83). Para vencer a fome é preciso reforçar o cuidado com nossa lar Comum: preservar a natureza, descobrir técnicas alternativas de manejo da terra, evitar os agrotóxicos, superar a “cultura do descarte” (TB 85-90).
É indispensável que nossas paróquias, comunidades, grupos organizados abracem com afeto a CF 2023 para que ela possa dar frutos de superação da miséria e da fome. Aí, sim, poderemos ser contados entre os convidados do Reino, pois “tive fome e me destes de comer” (Mt 25, 35).