Em 28 de outubro de 1965, o Concílio Vaticano II adotou a Declaração sobre as relações da Igreja Católica com as religiões não cristãs, que pôs fim a séculos de incompreensões entre judeus e cristãos. Jean-Dominique Durand, historiador das religiões diz: “o olhar que uns tem sobre os outros mudou radicalmente. A Igreja absolve o povo judeu da acusação de deicídio. Um documento para redescobrir e reler, sobretudo, depois dos novos dramas no Oriente Médio”.
Jean-Charles Putzolu – Cidade do Vaticano
Aprovada pelo Concílio Vaticano II, em 28 de outubro de 1965, a Declaração Nostra Aetate redefine as relações da Igreja Católica com as religiões não cristãs, em particular o judaísmo. O texto, que é breve, dedica o seu quarto parágrago – o mais longo – para a “religião judaica”. O documento recusa toda forma de discriminação e “lamenta o ódio, a perseguição e as manifestações de antissemitismo contra os judeus, em qualquer tempo e da parte de quem quer que seja”.
Durand: “Antes da Nostra Aetate não havia nada similar”
Esse texto, que reconhece a herança comum das duas religiões, abriu o caminho para o colóquio, em um povo profundamente ferido, duas décadas depois do Holocausto e após séculos de incompreensões entre cristãos e judeus.
Uma página da história foi virada. Para Jean-Dominique Durand, historiador das religiões e presidente da Associação de Amizade Judaico-Cristã da França, esse texto mudou radicalmente o olhar que um tinha sobre o outro. Todavia, as recentes tensões no Oriente Médio, o ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023 e a resposta militar israelense, colocam em dura prova as seis décadas de colóquio.
Nostra Aetate é um documento que marcou a história das relações entre judeus e cristãos. O que havia antes desta declaração conciliar e que página a Igreja Católica quis virar aprovando esse texto durante o Concílio Vaticano II?
Antes não existia documento oficial. Com um escopo teológico absolutamente inédito, é a primeira vez que a Igreja Católica oferece um textro doutrinário sobre religiões não cristãs. Nostra Aetate, pensada inicialmente para o judaísmo – depois de várias hesitações e complicações – se volta a todas as religiões e oferece aos católicos uma visão oficial da Igreja sobre religiões não cristãs. É a primeira vez que isso acontece: um documento doutrinário sobre o tema. Nostra Aetate representa uma verdadeira revolução.
Neste texto muito breve, que dedica o seu parágrafo mais longo ao judaísmo, pode-se dizer que, muito claramente, Igreja Católica absolve o povo judeu da acusação de deicídio?
Absolutamente sim. É exatamente esse o objetivo desse documento, que foi inserido na agenda do Concílio pelo próprio Papa João XXIII, depois da audiência concedida em junho de 1960 a um grande estudioso da história judaica, Jules Isaac, que já tinha se encontrado com Pio XII em 1949. Jules Isaac tinha perdido toda a sua família em Auschwitz e dedicou a sua vida ao colóquio entre judeus e cristãos, para que os cristãos adotassem uma visão diferente do judaísmo e abandonassem a visão de desprezo que tinha contra os judeus.
Jules Isaac escreveu um livro fundamental intitulado “Jesus e Israel”, no qual desenvolveu o vínculo que une o cristianismo e o judaísmo: Jesus era judeu. Maria, sua mãe, era judia; e todos os apóstolos e os primeiros mártires do cristianismo eram judeus. Essa foi a revolução iniciada por Jules Isaac.
Ele pediu ao Papa que revisasse a oração da Sexta-feira Santa, que os judeus consideravam ofensiva. A revisão aconteceu em duas etapas: a primeira com Pio XII, em 1955. Depois com João XXIII, em 1959, em vista do Concílio. Isaac convenceu João XXIII que o Concílio representava a oportunidade para repensar as relações entre judeus e cristãos, eliminando, especialmente, a acusação de deicídio.
A declaração rejeita toda forma de perseguição e abomina o antissemitismo. Isso era necessário para instaurar ou restabelecer o colóquio e começar a caminhar juntos?
Trata-se realmente de caminhar juntos e reforçar o vínculo. Esta palavra aparece em Nostra Aetate e foi usada, constantemente, por João Paulo II e pelos seus sucessores: o vínculo. É um termo forte que une cristianismo e judaímo, porque não se pode compreender a religião cristã sem conhecer um pouco o judaísmo, em especial, o Antigo Testamento.
O cristianismo não é, talvez, um ramo da oliveira do judaísmo?
É exatamente aquilo que diz São Paulo na Carta aos Romanos, falando da oliveira brava enxertada na oliveira boa: o cristianismo cresce sobre as raízes do judaísmo.
Então é reconhecer que os judeus foram os primeiros a receber a palavra de Deus …
Sim, certamente. No plano teológico, João Paulo II, partindo da Nostra Aetate, aprofundou a reflexão até reconhecer que a primeira aliança nunca foi revogada e que a telogia da substituição não tem mais razão de ser.
Essa teologia sustentava que o cristianismo havia substuído o judaísmo. Mas não é assim: o cristianismo veio depois para aprofundar, não para substituir. Isso é fundamental. Não é dito explicitamente em Nostra Aetate, mas o texto permitiu ao Vaticano criar, com Paulo VI, a Comissão para as Relações Religiosas com o judaísmo.
Inúmeros documentos foram produzidos depois pelo Vaticano e pelas Igrejas locais, aprofundando bastante o conteúdo de Nostra Aetate. A visita de João Paulo II à grande sinagoga de Roma – a sua viagem “mais longa e mais breve” – não teria sido possível sem a Nostra Aetate. A mais longa, porque foi preciso 2000 anos para realizá-la; a mais curta porque bastavam dois quilômetros para ir do Vaticano à Sinagoga.
Esse texto ainda é muito atual. No contexto de tensões que vivemos no Oriente Médio, é inevitável fazer uma conexão. De que modo esse texto pode servir hoje para acalmar as tensões e recordar que “a fraternidade universal exclui toda discriminação”, para citar o título do último parágrafo do documento?
É uma questão absolutamente fundamental. É o problema da recepção de Nostra Aetate e das consequências que devemos tirar para a vida cotidiana. Infelizmente, hoje assistismos ao retorno dos velhos preconceitos, mesmo em ambientes cristãos, nas paróquias, por vezes entre religiosos e sacerdotes. Inúmeros preconceitos antijudaicos ressurgem com força. O historiador judeu Georges Bensoussan, muito empenhado no colóquio judeu-cristão, observou que não se fala mais de deicídio. O termo foi substituído por “genocídio” – um fato gravíssimo. Estamos, portanto, numa fase de crise nas relações judaico-cristãs, devido ao drama ocorrido no Oriente Médio: primeiro com o terrível “pogrom” perpetrado pelos terroristas do Hamas em Israel, depois com a guerra que se seguiu e as fortes emoções que ela despertou em todo o mundo.
Às vezes, tendemos a esquecer a causa inicial desta guerra provocada pelo Hamas e, ao mesmo tempo, antigos preconceitos contra os muçulmanos também ressurgem. No entanto, a Nostra Aetate também nos convida a olhar para o islamismo e outras religiões. Mais do que nunca, precisamos estudar a Nostra Aetate. Devemos retornar a este documento conciliar, lê-lo e relê-lo, e propô-lo em nossas paróquias.
Os textos podem ser magníficos, mas são inúteis se não forem aceitos e internalizados. Hoje, infelizmente, 60 anos depois, temo que a Nostra Aetate tenha sido um tanto esquecida. Precisamos retornar aos fundamentos. E isso também se aplica — enfatizo — às nossas relações com o Islã na Europa. É claramente essencial.

