O novo embaixador da UE junto à Santa Sé fala à mídia do Vaticano: setenta anos de história nos ensinam que a verdadeira solução para os problemas vem de uma visão compartilhada, devemos buscar uma “paz justa”.
Christine Seuss – Vatican News
Martin Selmayr, alemão de Bonn, que completará 54 anos no próximo dia 5 de dezembro e ocupou vários cargos, inclusive o de secretário-geral da Comissão Europeia, é o novo embaixador da UE junto à Santa Sé. Nesta quinta-feira (03/10), ele foi recebido em audiência pelo Papa Francisco para a apresentação de suas Cartas Credenciais e, em uma entrevista à mídia do Vaticano, o diplomata falou sobre a história, os valores e o papel que a UE desempenha no cenário internacional, em uma fase altamente crítica.
O Papa Francisco pede continuamente e incansavelmente a paz no mundo. Ele acaba de citar a União Europeia, em particular, como um exemplo de pacificação. Até que ponto a UE se vê nesse papel e como ela vê o Papa como um parceiro na causa da paz?
Historicamente, a União Europeia é e sempre foi um projeto de paz. A União Europeia significa superar séculos de guerras entre os países europeus, trabalhar juntos além das fronteiras e resolver conflitos e diferenças de forma pacífica, por meio de instituições comuns e interesses comuns. Essa é a União Europeia. E a União Europeia é um projeto extraordinariamente positivo dos 27 estados-membros. Nunca houve uma guerra desde que eles se tornaram membros da União Europeia. Portanto, essa é uma conquista da União Europeia. Eu cresci na fronteira entre a Alemanha e a França, onde ainda é possível ver vestígios da Segunda Guerra Mundial no solo, na natureza – Verdun, por exemplo.
E creio que hoje podemos ir para o outro lado da fronteira sem nem mesmo perceber que estamos do outro lado, exceto, talvez, porque às vezes a comida é mais gostosa ou a paisagem é mais bonita. Portanto, essa é a força da União Europeia. E essa ideia de que é possível superar as diferenças, de que é possível superar conflitos e ódios antigos trabalhando juntos é a mensagem de esperança que a União Europeia transmite. Não é extraordinário que o projeto europeu, com a Declaração Schuman, tenha nascido apenas cinco anos após o fim da Segunda Guerra Mundial? Então, cinco anos depois de os alemães terem matado cidadãos franceses, a França foi à Alemanha com o Plano Schuman, para unir as indústrias de aço e carvão e garantir que nunca mais entrariam em guerra. Se isso não é uma mensagem de esperança nos tempos sombrios que estamos vivendo… Algumas pessoas perderam a esperança, mas se compararmos com o que foi possível na época na União Europeia, acho que podemos pegar esse exemplo e ele deve nos dar esperança de que a diplomacia, o trabalho em conjunto, a busca de soluções comuns – mesmo entre interlocutores aparentemente incompatíveis – é possível. Acho que vale a pena tentar e que nunca devemos nos cansar disso.
E o fato de o Papa Francisco estar pedindo isso sem nunca se cansar, como você bem disse, é, na minha opinião, um bom motivo para unir esforços e continuar nessa direção. Ele tem seu papel. Os políticos e diplomatas têm o deles. Mas acho que é relevante ouvirmos uns aos outros e não nos cansarmos de buscar soluções para a paz. A paz, no entanto, deve ser uma “paz justa”. Acho que isso é muito relevante. Portanto, devemos ter o cuidado de não buscar a paz a qualquer custo, mas buscar uma paz que seja justa e que nunca recompense uma guerra de agressão. Acho que isso é muito relevante quando falamos de paz.
Em sua opinião, quais são os perigos atuais para a unidade ainda em desenvolvimento da União?
Temos que trabalhar todos os dias na unidade da União Europeia porque temos 27 estados-membros. Mas acho que aqueles que sempre falam sobre a falta de unidade ignoram a forte unidade que existe em 96% de todas as questões. Os profetas da infelicidade costumam dizer que a União Europeia está morta ou moribunda, mas, na verdade, a União Europeia existe e está unida sempre que é necessário.
Vejo isso aqui em Roma, com as agências da ONU sediadas aqui, onde as instituições da UE trabalham juntas para achar soluções comuns, como a segurança alimentar no Programa Mundial de Alimentos da FAO. Também vejo isso em nossa resposta à guerra de agressão da Rússia. Muitos disseram que nunca estaríamos unidos, que teríamos que renovar as medidas restritivas a cada seis meses e que não teríamos sucesso. Estamos tendo sucesso há vários anos.
Portanto, acredito que nossa unidade é mais forte do que as pessoas pensam. Os benefícios de fazer parte da União Europeia – de ser a Equipe Europa trabalhando em conjunto – são muito maiores do que fazer isso sozinho. Eventualmente, até mesmo os céticos mais convictos percebem isso e, embora possam levantar algumas dúvidas, acabam aderindo à Equipe Europa. Esse é o espírito com o qual trabalhamos. A unidade não é óbvia, mas não perdi a esperança de que isso aconteça. Eu a vejo concretamente todos os dias.
Um relevante ponto de confronto é a acolhida de refugiados na União Europeia. Como o senhor vê a contribuição do Papa nesse sentido?
O Papa tem lembrado à Europa, com razão e constantemente, que somos um dos continentes mais ricos do mundo e que, portanto, temos o dever ética e a responsabilidade de cuidar e oferecer refúgio àqueles que fogem da guerra, da agressão e do terror. Em minha opinião, isso é relevante e é a base da política de migração da União Europeia.
Por outro lado, também temos 27 democracias sob pressão, e de nada adiantará se essas democracias se enfraquecerem ao tentarem lidar com o desafio da migração.
Portanto, acho que temos que combinar as duas coisas: dar aos nossos cidadãos a certeza de que suas vidas, sua segurança pessoal e suas famílias estão seguras e, ao mesmo tempo, continuar o trabalho humanitário realizado pela União Europeia. Os direitos fundamentais de asilo devem permanecer no centro da política da UE, mas isso é muito mais complicado do que parece. Aqueles que dizem que há soluções fáceis para o desafio constante da migração e do asilo não estão dizendo a verdade. Será necessário um trabalho árduo todos os dias, e é bom que o Santo Padre nos lembre da importância da humanidade e da solidariedade nesse processo. Por outro lado, também é relevante que permaneçamos realistas sobre o que nossas sociedades podem administrar e sobre a necessidade de fornecer os meios para integrar aqueles que chegam ao nosso continente, pois esse deve ser o outro lado da moeda.
Em sua opinião, qual é a posição atual da União Europeia no cenário internacional?
A União Europeia pode parecer velha – ela tem mais de 70 anos – mas sua política externa e de segurança comum é relativamente jovem. Só existimos em nossa forma atual – com embaixadas e um ministro de relações exteriores comum – há cerca de quinze anos, desde o Tratado de Lisboa. Portanto, em muitos aspectos, ainda estamos em nossa infância. E acho que devemos ser pacientes com relação a isso.
A União Europeia está apenas começando a tomar decisões conjuntas no campo da política externa comum. E vemos isso todos os dias: a política externa está no centro da soberania. Muitos Estados membros têm origens históricas diferentes, portanto, uni-los depois de apenas 15 anos não é uma tarefa fácil. Para fazer uma comparação, nos primeiros 15 anos da Política Agrícola Comum, tivemos a “política da cadeira vazia” de Charles de Gaulle. Foi um período difícil.
Ainda estamos nos inícios da política externa comum e estamos fazendo muitas coisas juntos, mas não tantas quanto poderíamos fazer. Por exemplo, em relação à nossa posição comum sobre a escalada da crise no Oriente Médio, cada país membro tem uma experiência histórica diferente. Um alemão ou um austríaco vê esse conflito de forma totalmente diferente de um irlandês, um espanhol ou um esloveno. Isso reflete as diferenças na União, e acho que precisamos ouvir mais uns aos outros antes de tomarmos uma posição. Cada Estado-Membro tem experiências diferentes com diferentes partes do mundo e precisamos unir essas diferenças.
Alguns chamam, com razão, o trabalho do Alto Representante para Relações Exteriores e Política de Segurança de um dos mais difíceis do mundo. Fico muito feliz que Joseph Borrell tenha se esforçado muito nesse trabalho nos últimos cinco anos. Agora, a próxima ministra das Relações Exteriores da UE será a ex-primeira-ministra da Estônia, Kaja Kallas. Ela é uma mulher muito enérgica e comprometida que trará uma nova perspectiva. Temos que ouvir as diferentes perspectivas e, com base nelas, forjar uma política comum. Isso leva tempo e, às vezes, pode ser frustrante, até mesmo para mim, que gostaria que as coisas andassem mais ligeiro. Mas então me lembro de que ainda estamos em nossa adolescência em termos de política externa. Isso levará tempo e precisamos de paciência.
Até que ponto a União Europeia cumpre e mantém sua meta de colocar as pessoas no centro, inclusive no aspecto econômico?
O modelo econômico da União Europeia é o de uma economia de mercado social e ecológica. Sim, a economia de mercado está em seu centro, porque precisamos de prosperidade para cumprir nossas funções – seja a segurança social ou a ajuda humanitária. Mas esse sistema econômico também implica responsabilidade. Responsabilidade pelo meio ambiente, pelo bem-estar social e pelos direitos humanos.
Ao longo das décadas, a União Europeia se transformou em uma economia de mercado responsável. Precisamos do comércio, mas o combinamos com a sustentabilidade e com as metas que aprovamos nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Vejo isso todos os dias em nosso trabalho aqui em Roma com as Nações Unidas. A União Europeia promove uma economia agrícola próspera, mas também precisamos garantir que ela seja boa para nossa saúde, sustentável e preserve o meio ambiente. Todas essas coisas estão conectadas, e somente se nós, como um dos continentes mais ricos, estivermos à altura dessa responsabilidade, poderemos convencer outras partes do mundo a compartilhá-la conosco.
Qual a sua impressão do encontro com o Papa Francisco?
Para qualquer diplomata, achar o Santo Padre é um dos momentos mais especiais com que se pode sonhar. Você não está simplesmente apresentando suas credenciais a um chefe de Estado – embora o Santo Padre seja um chefe de Estado -, mas também devido à sua personalidade e à atmosfera criada por ele e sua equipe, é um momento muito pessoal para você, sua família e seus colegas.
O que mais me impressionou, e o motivo pelo qual nunca esquecerei esse momento, foi a humanidade, o calor e o toque pessoal. Não foi simplesmente o evento formal de dar uma carta; foi uma experiência verdadeiramente pessoal que me será cara para o resto da vida.