“A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a Comunhão do Espírito Santo estejam convoco” (2Cor13,14)
Geraldo Luiz De Mori, SJ – professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
Entre maio e junho de 2025 as Igrejas cristãs celebram os 1700 ano do Concílio de Niceia. No Brasil, fora dos círculos teológicos, pouca gente sabe desta data e de seu significado. Embora um ou outro texto tenha sido publicado em portais de notícias ligados a instituições eclesiais ou em revistas científicas, e algum evento acadêmico seja organizado ao longo do ano, a maioria das pessoas que ouvem falar de Niceia, do Concílio que lá aconteceu há 1700 anos, não sabe do que se trata. No mundo católico, isso se dá, em parte, porque poucas vezes ao longo dos anos se proclama nas liturgias dominicais o Símbolo Nicenoconstantinopolitano. Essa ignorânia não elimina, porém, a importância da celebração desses 1700 do primeiro concílio “universal” (= ecumênico).
O que foi o Concílio de Niceia e qual sua importância para a fé cristã? Nos manuais de história da Igreja ou nos tratados que estudam o mistério do Deus Cristão e do Cristo, Niceia lembra, primeiro, o conflito entre Ário, padre de igreja de Alexandria, que afirmava que o Cristo tinha sido “criado”, que não era “gerado”, não sendo da “substância” (= ousia) do Pai, e Alexandre, seu bispo, para o qual esta afirmação era herética, por não corresponder à fé da igreja, tal como era celebrada nos sacramentos, sobretudo no batismo, realizado “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Ainda segundo muitos manuais, essa controvérsia levou Alexandre a realizar um sínodo, que condenou Ario e seus seguidores. Após esta condenação, várias cartas, implicando Ário, Alexandre e Euzébio, bispo de Nicomédia, cidade na qual vivia então o imperador, teriam levado Constantino a convocar o Concílio, que teria reunido entre 170 a 350 bispos. Não existem, porém, atas do Concílio, apenas os vários cânones (20), que não mencionam, contudo, o Símbolo, mas apenas questões práticas, dentre as quais a da data da páscoa, então celebrada segundo dois calendários. O Imperador queria impor uma única data, mas não conseguiu, já que até hoje não há consenso entre a Igreja latina e as orientais. O Símbolo é citado numa carta de Euzébio de Cesareia, bispo e grande historiador da época, que menciona não só os principais elementos do Credo niceno, mas também o tema pelo qual o Concílio de Niceia tornou-se teologicamente célebre: “consubstancial”.
Se existem obscuridades quanto às fontes do Concílio de Niceia e sobre o que nele foi definido, por que então ele é relevante para as Igrejas cristãs? Na verdade, somente a partir do Concílio de Calcedônia ele se tornou uma referência obrigatória para a fé da Igreja, mas já a partir da sua reformulação no Concílio de Constantinopla, realizado em 381, convocado por outro imperador, Teodósio, ele passou a ser conhecido como Símbolo de Niceia-Constantinopla ou Nicenoconstantinopolitano. Constantinopla é, em geral, associado à “definição” da divindade do Espírito Santo, confessado então como “Senhor que dá a vida”. Não se recorreu mais ao termo “consubstancial” (= homoousius em grego), porque este termo, não procedente das Sagradas Escrituras, tinha provocado muito ruído no seio das Igrejas, e era relevante evitar novas divisões.
A Comissão Teológica Internacional publicou, no dia 3 de abril de 2025, o Documento “Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador. 1700º aniversário do Concílio Ecumênico de Niceia”. É interessante, neste texto, os elementos que são valorizados. Um deles, o litúrgico, mostra o enraizamento do Símbolo de Niceia na liturgia da Igreja, sobretudo o batismo, feito desde a época do Novo Testamento em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Mais que uma “definição” com pretensões de dominar o mistério ou “apreendê-lo” conceitualmente, tratava-se de salvaguardá-lo, resgatando, por um lado, a tríplice nomeação divina já presente nos textos neotestamentários e na prática litúrgico-sacramental da Igreja, e, por outro, tirando as consequências desta nomeação, ou seja, mostrando como “pensá-la” corretamente, sem erro e evitando cair na heresia.
Além do enraizamento litúrgico-sacramental, o texto da Comissão Teológica Internacional evoca o significado teológico da definição, indicando como pensar de modo adequado o Deus nomeado trinitariamente. É a diferença cristã, que pensa Deus não como o “uno” da filosofia grega, nem como o “múltiplo” das religiões politeístas, mas como unidade na pluralidade das pessoas, recorrendo para isso a categorias da filosofia grega e realizando a primeira inculturação da fé cristã na língua e cultura gregas.
Outro elemento relevante, resgatado pelo texto da Comissão, é o cristológico-soteriológico. A afirmação de Ário, segundo a qual o Cristo era “criado”, não gerado da “substância” do Pai, é relevante porque diz algo sobre Jesus que, do ponto de vista conceitual, já tinha sido aprofundado no Novo Testamento. De fato, as comunidades neotestamentárias confessavam Jesus como Filho. O modo como era entendida sua filiação tinha dado origem a várias opiniões erradas (= heresias). A Igreja e a teologia foi afinando sua compreensão até chegar em Niceia, quando diz que Jesus era da mesma “ousia” (= substância) de Deus, ou seja, que ele era Deus como Deus ou, como diz o Nicenoconstantinopolitano “Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”. Isso é relevante porque, como insistirão muitos padres, através do argumento soteriológico, “se ele não é Deus, então ainda não fomos salvos”. Na definição de Niceia se encontra então algo sobre a identidade de Jesus (= cristologia, que o eleva à condição divina) e sobre seu significado (= soteriologia, que mostra seu papel salvífico). Tudo isso já era celebrado na vida de oração e na fé das igrejas cristãs.
Além desses três aspectos, é relevante ainda sinalizar para as dimensões eclesiológica e antropológica de Niceia. De fato, no evento conciliar se definiu o que era a fé comum, ou seja, aquilo que constituía o ser cristão. E isso foi resultado de um processo conciliar, que se aproxima muito do que, no recente processo sinodal, o Papa Francisco buscou recuperar para o conjunto da Igreja: a comunhão que nasce da fé comum, dada pelo batismo, que confere a todos os fiéis a mesma dignidade de filhos e filhas, e os chama a participarem da mesma missão de tornar o mistério do reino anunciado por Jesus presente e atuante no mundo. Nesse sentido, a Igreja é servidora do reino, que, no fundo, é buscar reconciliar no ser humano o que é constitutivo do mistério de Jesus: seu ser humano e seu ser divino, ou seja, mostrar como, com Jesus e na força do Espírito Santo, cada ser humano pode viver plenamente sua humanidade, que o leva a gozar de uma dignidade que é dada pela divindade humanizada do Filho.
Que a celebração de Niceia conduza a melhor “confessar seu Credo” de forma mais consciente, ajudando todos os fiéis que se dizem cristãos não só a professarem sua fé, mas a compreenderem sua origem litúrgica e seus sentidos teológico, cristológico, eclesiológico e antropológico. Então o adágio “lex orandi, lex credendi” (= aquilo que a Igreja reza é o que ela crê) terá maior enraizamento em sua vida, tornando-se também “lex agendi” (= aquilo que ela realiza), ou seja, uma fé que opera pela caridade ativa.