O desenvolvimento histórico da Solenidade de Corpus Christi

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A Solenidade de Corpus Christi, ou do Santíssimo Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, é uma das celebrações mais significativas do calendário litúrgico. Celebrada anualmente na quinta-feira após a Solenidade da Santíssima Trindade (em alguns países, como na Itália, é transferida para o domingo seguinte), ela exalta a presença real de Jesus no Sacramento da Eucaristia, um dos mistérios centrais da fé católica.

Padre Carlos Augusto Azevedo da Silva – Arquidiocese do Rio de Janeiro

A Solenidade de Corpus Christi tem suas raízes no século XIII, um período de grande fervor eucarístico na Europa medieval. A instituição da festa está intimamente ligada à figura de Santa Juliana de Liège, uma religiosa agostiniana da Bélgica. Juliana, nascida por volta de 1193, teve uma vida marcada por intensa espiritualidade e devoção à Eucaristia. Desde jovem, ela relatava visões místicas nas quais via uma lua cheia com uma mancha escura, que interpretou como a ausência de uma festa dedicada exclusivamente ao Santíssimo Sacramento no calendário litúrgico.

Naquela época, já era celebrada na Quinta-Feira Santa, durante a Missa da Ceia do Senhor, a instituição da Eucaristia por Jesus na Última Ceia. No entanto, a Quinta-Feira Santa ocorre no contexto da Semana Santa, um período marcado pela contemplação da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo, o Mistério Pascal que é o centro de nossa fé cristã, o que limitava a possibilidade de uma celebração jubilosa centrada exclusivamente na exaltação do Mistério Eucarístico. As visões de S. Juliana, portanto, inspiraram a criação de uma festa distinta, focada na adoração e no louvor à presença real de Cristo na Eucaristia.

Procissão dos Santos Corpos saindo da Catedral dos Agostinhos, em Toulouse, na França

Procissão dos Santos Corpos saindo da Catedral dos Agostinhos, em Toulouse, na França

S. Juliana compartilhou suas visões com seu confessor e com outros clérigos, incluindo Roberto de Thourotte, bispo de Liège. Em 1246, o bispo instituiu uma celebração local na diocese de Liège, chamada de Festa de Corpus Christi. Essa foi a primeira vez que uma festa dedicada ao Corpo de Cristo foi oficialmente celebrada, embora ainda de forma restrita.

A expansão da festa para toda a Igreja Católica veio com o Papa Urbano IV, que havia sido arquidiácono em Liège e estava familiarizado com a celebração local. Um evento crucial que impulsionou a universalização da festa foi o chamado Milagre de Bolsena, ocorrido em 1263 na cidade italiana de Bolsena. Durante uma missa celebrada por um padre boêmio, que duvidava da presença real de Cristo na Eucaristia, a hóstia consagrada começou a sangrar, manchando o corporal (alfaia litúrgica usada sobre o altar durante a missa). O milagre foi interpretado como uma confirmação divina da doutrina da transubstanciação, que afirma que o pão e o vinho, durante a consagração, tornam-se verdadeiramente o Corpo e o Sangue de Cristo.

Procissão de Corpus Christi com o Papa Gregório, por Ferdinando Cavalleri, c.1794–1865

Procissão de Corpus Christi com o Papa Gregório, por Ferdinando Cavalleri, c.1794–1865

Impressionado pelo ocorrido, o Papa Urbano IV, em 1264, promulgou a bula Transiturus de hoc mundo, que instituiu a Solenidade de Corpus Christi para toda a Igreja. A data escolhida foi a quinta-feira após a Oitava de Pentecostes, em referência à Quinta-Feira Santa. Urbano IV também encomendou a São Tomás de Aquino, um dos maiores teólogos da Idade Média, a composição dos textos litúrgicos para a nova festa. São Tomás escreveu hinos e orações que se tornaram clássicos, como o Pange Lingua (as duas últimas estrofes formam o hino Tantum Ergo, “Tão Sublime Sacramento”, tradicionalmente cantando antes da benção Eucaristica), Adoro Te Devote e Lauda Sion, que ainda hoje são usados na liturgia.

Apesar da instituição oficial, a festa demorou a se consolidar em toda a cristandade. Após a morte de Urbano IV, em 1264, a celebração enfrentou resistência em algumas regiões, mas foi reforçada por papas posteriores, como Clemente V e João XXII. No Concílio de Trento (1545-1563), a Igreja reafirmou a importância da Eucaristia e da Festa de Corpus Christi, especialmente em resposta às críticas da Reforma Protestante, que questionava a doutrina da transubstanciação.

Procissão de Corpus Christi, Getty Center, em Los Angeles, Califórnia

Procissão de Corpus Christi, Getty Center, em Los Angeles, Califórnia

A Solenidade de Corpus Christi está profundamente enraizada na teologia eucarística católica. A doutrina da transubstanciação, formalizada no Concílio de Latrão IV (1215) e aprofundada por São Tomás de Aquino, sustenta que, na consagração, a substância do pão e do vinho é transformada no Corpo e Sangue de Cristo, enquanto as aparências (acidentes) de pão e vinho permanecem. Essa crença na presença real distingue a teologia católica de outras tradições cristãs e é o cerne da celebração de Corpus Christi.

A festa não apenas celebra a instituição da Eucaristia, mas também enfatiza sua dimensão comunitária e missionária. A Eucaristia é vista como o “pão da vida” (Jo 6,35), que une os fiéis a Cristo e uns aos outros, formando o Corpo Místico de Cristo, que é a Igreja. Além disso, a solenidade destaca a adoração eucarística fora da missa, como nas procissões e na exposição do Santíssimo Sacramento, práticas que se tornaram características da festa.

Após a Missa de Corpus Christi, se faz a Procissão Eucarística. Estas procissões foram dotadas de indulgências pelos Papas Martinho V e Eugênio IV, e se fizeram bastante comuns a partir do século XIV. Com toda a honra possível ao Rei Jesus.

Finalmente, o Concílio de Trento (em 1.500) declara que: “seja celebrado este excelso e venerável sacramento com singular veneração e solenidade; e reverente e honradamente seja levado em procissão pelas ruas e lugares públicos”. Assim nasceu esta maravilhosa Solenidade de Corpus Christi.

Uma das marcas distintivas da Solenidade de Corpus Christi é a procissão eucarística, na qual o Santíssimo Sacramento é levado pelas ruas em um ostensório, acompanhado por hinos, orações e, em muitas culturas, tapetes coloridos feitos de flores, serragem e outros materiais. Essa prática surgiu na Idade Média e simboliza a presença de Cristo caminhando entre seu povo, trazendo bênçãos às comunidades.

Na Europa, especialmente em países como Portugal, Espanha, Itália e Alemanha, as procissões de Corpus Christi são eventos grandiosos, com altares montados ao longo do trajeto e participação de autoridades civis e religiosas.  Em Portugal, por exemplo, a festa é marcada por tapetes de flores que formam desenhos religiosos, uma tradição que também se espalhou para o Brasil, onde cidades como Ouro Preto, Pirenópolis e São João del Rei são conhecidas por suas celebrações. No Rio de Janeiro, anualmente, é realizada a grandiosa procissão de Corpus Christi, saindo da Igreja da Candelária em direção à Catedral. Além das diversas celebrações e procissões realizadas nos diversos vicariatos territoriais espalhados pelo território da arquidiocese, reunindo uma imenso multidão de fiéis em todos os cantos da cidade.

Na América Latina, a festa incorporou elementos das culturas locais. No Brasil, as procissões são acompanhadas por cânticos e orações, e os tapetes de serragem colorida são uma expressão de arte popular. Em algumas regiões, como no Peru e na Bolívia, a festa se mistura com tradições indígenas, criando uma rica expressão, que além de religiosa se tornou, também, cultural.

Além das procissões, a adoração eucarística é outro pilar da solenidade. Muitas paróquias realizam a exposição do Santíssimo Sacramento com momentos de oração silenciosa e hinos eucarísticos. A prática da “Hora Santa Eucarística” também é comum, especialmente entre movimentos eucarísticos e comunidades religiosas.

Em 2025, a Arquidiocese do Rio de Janeiro organiza a 99a Semana Eucarística, realizada na semana que antecede a Solenidade de Corpus Christi, na Igreja de Sant’Anna, na região central do Rio. Toda a realidade arquidiocesana é contemplada e convocada a participar desse forte momento de espiritualidade eucarística, através das pastorais, movimentos e serviços, enfim, todas as forças vivas que formam a arquidiocese.

Com o passar dos séculos, a Solenidade de Corpus Christi manteve sua relevância, mas também enfrentou desafios em um mundo cada vez mais secularizado. No século XX, o Concílio Vaticano II (1962-1965) trouxe uma renovação litúrgica que enfatizou a participação ativa dos fiéis na Eucaristia, reforçando o caráter comunitário da festa. A constituição Sacrosanctum Concilium destacou a Eucaristia como a “fonte e o ápice” da vida cristã, o que reavivou o interesse pela celebração de Corpus Christi.

Em algumas regiões, no entanto, a solenidade perdeu parte de seu caráter público devido à urbanização e à diminuição da prática religiosa. Em países onde a quinta-feira não é feriado, a Igreja transferiu a celebração para o domingo seguinte, para facilitar a participação dos fiéis.

No século XXI, a Solenidade de Corpus Christi também ganhou um caráter missionário, com a Igreja incentivando os fiéis a levarem a mensagem da Eucaristia ao mundo. Iniciativas como os congressos eucarísticos internacionais, nacionais e regionais, que são realizados periodicamente, reforçam a centralidade do Sacramento na missão evangelizadora da Igreja.

Além de sua dimensão religiosa, Corpus Christi tem um impacto cultural e social significativo. Em muitas comunidades, a festa é uma oportunidade para reforçar laços comunitários, promover a solidariedade e expressar a identidade cultural. Os tapetes de flores e serragem, por exemplo, são frutos do trabalho coletivo, envolvendo pessoas de todas as idades e classes sociais.

A solenidade também inspira atos de caridade. Em muitas paróquias, a coleta de alimentos e roupas durante a festa é uma prática comum, refletindo o chamado evangélico de partilhar o pão com os necessitados. Esse aspecto social está alinhado com a mensagem de Cristo, que na Eucaristia se faz alimento para todos.

A Solenidade de Corpus Christi é uma celebração que transcende o tempo, unindo a espiritualidade medieval às aspirações do mundo contemporâneo. Desde sua origem com S. Juliana de Liège até sua consolidação como uma das principais festas da Igreja, ela reflete a centralidade da Eucaristia na fé católica. Suas procissões, hinos e tradições culturais continuam a inspirar milhões de fiéis, enquanto sua mensagem de comunhão e partilha ressoa em um mundo que busca unidade e esperança.

Padre Carlos Augusto Azevedo da Silva – Arquidiocese do Rio de Janeiro

Doutorando em Direito Canônio na Universidade Gregoriana, em Roma 

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