Que neste momento em que ele nos deixa, seja esse legado espiritual que nos deixa, um tesouro que saibamos preservar e aumentar, como Igreja verdadeiramente discípula, missionária e sinodal.
Padre Adelson Araújo dos Santos SJ – Sacerdote jesuíta, brasileiro, professor da Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma
Os 12 anos de pontificado do Papa Francisco ficarão, com certeza, marcados na nossa memória afetiva e intelectiva, por tudo o que ele nos marcou com seu carisma pessoal de pastor que sempre buscou se aproximar das suas ovelhas e de não deixar ninguém de fora do rebanho de Cristo, como também por meio dos seus ensinamentos, caracterizados por uma forte teologia e espiritualidade do encontro, da escuta e do discernimento.
Contudo, tendo chegado aos 67 anos de vida consagrada como membro da Companhia de Jesus, não é de admirar que durante os seus 12 anos de pontificado, muito do que o Papa nos comunicou com gestos e com palavras tenha origem na espiritualidade dos exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola. De fato, é possível identificar no jeito como Francisco viveu o seu pontificado alguns traços marcantes da espiritualidade inaciana. Ele mesmo fez questão de ressaltar isso em julho de 2013, no voo de volta da viagem que fizera ao Rio de Janeiro para a Jornada Mundial da Juventude, quando perguntado se ainda se sentia jesuíta como Papa, assim respondeu: “Eu me sinto jesuíta na minha espiritualidade, na espiritualidade dos Exercícios, a espiritualidade que eu tenho no coração”.
Mas, como reconhecer no pontificado do Papa Francisco esse carisma inaciano? Para responder a esta pergunta eu destacaria três características centrais deixadas por Santo Inácio em seus Exercícios Espirituais, que moldaram a espiritualidade e o carisma dos jesuítas e que acompanharam Francisco diariamente na sua experiência de Deus e na sua missão como bispo de Roma e sucessor de Pedro.
A primeira característica é a de sentir-se chamado a ser um “contemplativo na ação”, expressão criada por Jerônimo Nadal, um dos primeiros jesuítas e estreito colaborador de Santo Inácio em Roma. Isto significa que, para um jesuíta (e todo inaciano ou inaciana) existe uma harmonia total entre a vida espiritual e a vida apostólica, pois em tudo aquilo que fazemos e em qualquer ambiente onde estivermos podemos (e devemos) buscar e achar a Deus, ou seja, não apenas nos momentos formais de oração ou no interior dos templos ou conventos. Isso faz com que seja o Espírito de Cristo a guiar tudo aquilo que faço ao longo do meu dia, para que se cumpra a vontade de Deus na minha ação apostólica. E, por outro lado, permite que o meu ministério e serviço não seja um mero ativismo ou rotina profissional, mas seja fruto da minha oração, como um encontro íntimo com o Senhor que não me fecha em mim mesmo, mas abre sempre para a missão e para os demais.
Ora, não temos dúvidas do quanto o Papa Francisco souber viver e ensinar essa necessária harmonia entre oração e ação, tendo sido ele mesmo um grande “contemplativo”, alguém que deu sempre um profundo testemunho do valor da oração e da vida espiritual, mas sem jamais abandonar a vida de serviço a Deus e ao próximo. De fato, ele mesmo em uma de suas catequeses alertou que “alguns mestres de espiritualidade do passado compreenderam a contemplação em antítese à ação, e exaltaram aquelas vocações que fogem do mundo e dos seus problemas, a fim de se dedicarem inteiramente à oração. Na realidade, em Jesus Cristo, na sua pessoa e no Evangelho não há antítese entre a contemplação e a ação, não. No Evangelho, em Jesus não há contradição” (Catequese – 32. A oração contemplativa).
A segunda característica da espiritualidade que os membros da Companhia de Jesus buscam viver, como vimos o Papa Francisco fazer ao longo da sua vida, tem a ver com a nossa postura no mundo e no modo de viver a nossa fé e espiritualidade cristã de forma encarnada e em constante relação e colóquio com a realidade, com as diferentes culturas e com todas as criaturas que conosco habitam a mesma lar comum, que é o nosso planeta. De fato, nos Exercícios Espirituais meditamos e contemplamos a criação divina como obra do amor que Deus para com cada uma de suas criaturas, de modo muito especial o ser humano. E, quando pelo pecado pessoal e estrutural essa criação é ameaçada e destruída, afastando-se do plano divino, meditamos e contemplamos como a Santíssima Trindade resolve enviar ao mundo o Redentor, não para condenar, mas para salvar o mundo, por meio de Jesus, caminho, verdade e vida.
Desse modo, quando vemos a preocupação que teve o Papa pelas criaturas de Deus, ao escrever uma encíclica (Laudato Si’ – 2015) nos chamando a atenção para a necessidade de cultivarmos uma ecologia integral, que cuide melhor de tudo aquilo que Deus criou e nos chama a uma mudança de hábitos e uma verdadeira “conversão ecológica” para assegurar às futuras gerações um mundo melhor, ele certamente estava expressando uma espiritualidade que não nos deixa indiferente ao que se passa ao nosso redor e com os nossos semelhantes e outras criaturas de Deus, pois nos Exercícios inacianos rezamos que Cristo deseja ter colaboradores que o ajudem em sua missão redentora e salvífica, o que implica também viver uma espiritualidade que se preocupe com a dimensão ambiental, social, política, cultural e cotidiana da vida, já que em tudo isso o Espírito de Cristo age. Da mesma forma, Francisco mostrou a fonte inaciana da sua espiritualidade quando escreveu “Fratelli tutti”, encíclica que nos recorda que somos todos irmãos e, portanto, temos que ter cuidado pelo outro, como queria Santo Inácio que fosse as relações fraternas nas comunidades jesuítas, chamando a seus membros de “amigos no Senhor” e levando-os a praticar a solidariedade e a justiça do Reino em favor dos que sofrem injustiças e abandono.
Finalmente, a terceira característica marcante do carisma inaciano que facilmente identificamos na vida e na mensagem do Papa Francisco foi o de sempre ter buscado o “discernimento” espiritual em tudo o que fazia e em todas as decisões que tomava. De fato, este é um dos maiores dons deixado pelos Exercícios Espirituais, não apenas para os membros da Companhia de Jesus, mas para todos os cristãos. Como afirmou o Superior Geral dos jesuítas, Pe. Arturo Sosa, “os Exercícios Espirituais Inacianos são um tipo de escola do discernimento. Seguindo os Exercícios Espirituais, toda pessoa pode ser ajudada a escutar a voz de Deus chamando a totalidade da vida humana a decidir pelo seguimento dessa voz – para fazer uma escolha”.
Se observarmos bem, todo o pontificado de Francisco foi uma constante escola de discernimento apostólico e eclesial, como se verificou recentemente com o Sínodo da sinodalidade, cujo tema foi “Por uma Igreja Sinodal: Comunhão, Participação e Missão”. Tendo participado da comissão de espiritualidade de preparação ao sínodo e, posteriormente, das duas sessões da assembleia sinodal em outubro de 2023 e 2024, pude perceber claramente o desejo do Papa de que nós nos puséssemos em um caminho de reflexão no qual todos as vocações da Igreja — leiga, religiosa, sacerdotal, diaconal — se sentissem chamadas a participar ativamente, escutando-se mutuamente e discernindo a voz do Espírito Santo falando por meio de todos os batizados e batizadas.
Muitas outras características do modo de ser, de pensar e de agir do Papa Francisco poderiam ser identificadas como oriundas das fontes inacianas dos Exercícios Espirituais, que ele conheceu desde cedo na sua formação jesuítica e que procurou viver até o fim da sua vida terrena, agora chegada ao fim. Que neste momento em que ele nos deixa, seja esse legado espiritual que nos deixa, um tesouro que saibamos preservar e aumentar, como Igreja verdadeiramente discípula, missionária e sinodal.