Francisco em conversa com o canal de TV argentino Orbe 21. “Preocupa-me que os apelos pela paz entrem por um ouvido e saiam pelo outro”, diz o Pontífice na entrevista gravada logo após o encerramento do Sínodo. O Papa diz que está preocupado com a “tendência universal à autodestruição por meio da guerra”. Em seguida, ele fala sobre o Jubileu: que seja “um tempo de perdão”, não “associado ao turismo religioso”
Salvatore Cernuzio – Vatican News
É um Papa preocupado que emerge da entrevista de mais de 45 minutos com a emissora católica argentina Canal Orbe 21. Preocupado com a “tendência universal à autodestruição por meio da guerra”, com a “hipocrisia” de falar de paz enquanto “arma” os conflitos. Preocupado com as mortes violentas de mães, crianças, civis inocentes ou jovens enviados para a frente de batalha, e com a falta de colóquio e o enfraquecimento das instituições.
A entrevista
Francisco é entrevistado pela estação de TV que ele mesmo, então arcebispo de Buenos Aires, fundou como um canal da arquidiocese. A entrevista, conduzida pela jornalista Maria Bernarda Llorente, poucos dias após a conclusão do Sínodo, é transmitida esta sexta-feira, 20 de dezembro, na iminência da abertura do Jubileu. O Ano Santo, bem como a assembleia sinodal, as reformas e o porvir da Igreja, estão entre os temas do colóquio gravado na lar Santa Marta. Mas a maior parte do espaço é dedicada aos acontecimentos atuais do mundo, começando pela guerra que, como o Papa repetiu tantas vezes, é “uma derrota humana”.
Hipocrisia de fundo
“Preocupa-me o fato de que os inúmeros apelos à paz das organizações internacionais entram por um ouvido e saem pelo outro. Há também uma hipocrisia de fundo: falamos de paz, mas armamos a guerra”, denuncia Francisco, reiterando que ”um dos maiores retornos de investimento na Europa são as fábricas de armas. Portanto, organizamos conferências e encontros de paz, mas continuamos a produzir armas para matar”.
Ações de guerrilha, não de guerra
O que o Papa vê é “uma tendência universal à autodestruição por meio da guerra”. Em particular, nas guerras na Ucrânia e na Terra Santa – diz ele -, há ações “criminosas” que são “mais de guerrilha do que de guerra” e, em referência a Gaza, acrescenta: “Quando você se depara com uma mãe com seus dois filhos que está passando na rua porque foi buscar algo em lar e volta para a paróquia onde está vivendo e a metralham sem motivo, isso não é uma guerra, com as regras normais de uma guerra. É terrível”.
Preocupação com a Ucrânia
Falando sobre a guerra na Ucrânia, o Papa enfatiza que há uma “grande hipocrisia”. “Há uma necessidade urgente de um tratado de paz – disse -, mas quando fala de paz, começam a dançar o minueto com coisas secundárias”. Por isso, ele diz estar preocupado com o fato de que os jovens também estão indo para a frente de batalha na Ucrânia: “Acontece que eles não têm muitos homens, enquanto a Rússia tem muitos”.
Enfraquecimento das instituições
O Papa não sabe dizer “quais mecanismos estão realmente falhando”, mas “certamente – afirma – há uma ética pessoal que está faltando”. As reuniões que são realizadas para obter a paz são reuniões de interesses”. O colóquio é relevante, ressalta, e a União Europeia teria a capacidade de implementá-lo, só que essas instituições “também se enfraqueceram um pouco”. “Se não houver colóquio, não haverá paz”, afirma o Papa Bergoglio.
Negacionismo venenoso
Com o mesmo vigor, ele aponta o dedo para o negacionismo ou discurso de ódio que pouco contribui para o colóquio: “O negacionismo é sempre venenoso”, diz na entrevista, “o negacionismo é suicida. Somente a realidade ajudará a achar uma saída para os conflitos”.
Não a uma religião semelhante à política
Igualmente perigoso segundo o Papa é “quando uma religião se torna algo como uma política de Estado”. Um fenômeno que não parece ocorrer no Sul do mundo, como os países visitados em setembro na Ásia e na Oceania: lá, lembra Francisco, “o que prevalece é o respeito, o colóquio. Não encontrei perseguição religiosa cristã em nenhum lugar. Nem o contrário, por parte de outras religiões. Esses países são um exemplo de coexistência”.
A capacidade de pedir desculpas
Sobre o tema das viagens, a conversa relembrou a peregrinação ao Canadá em 2022, durante a qual o Papa Francisco pediu desculpas aos povos indígenas pelos abusos e violências cometidos no passado por membros da Igreja católica. “Quando se vê um erro, se dialoga e se pede desculpas, é um bom passo em direção à paz, sempre, sempre.”
O Sínodo e a escuta
Para a Igreja, é relevante saber pedir desculpas, assim como é fundamental saber ouvir. Foi justamente para desenvolver a capacidade de escutar que foi convocado o Sínodo sobre a sinodalidade, que, enfatiza o Papa, “abraça os problemas da humanidade e da Igreja de hoje, e procura resolvê-los na linha do colóquio”. A esse respeito, Francisco recorda o encontro com as mulheres que participaram da assembleia: cerca de cem que “expressaram suas ideias com coragem, algo inédito 40 atrás”.
A Igreja caminhe com “todos, todos, todos”
Na mesma linha, Francisco esclarece o “todos, todos, todos” que ele quer que seja a marca registrada da Igreja e que, admite, gerou alguns “mexericos”. “Muitas vezes me perguntam sobre a admissão na Igreja e eu digo o que Jesus disse no Evangelho: todos, todos, todos. E os pecadores? Todos e que se acomodem dentro de sua situação, mas todos dentro. Todos para dentro e dentro, que se vá discernindo, que todos dialoguem e, talvez, se alguém tiver entrado sorrateiramente com más intenções, com uma atitude ruim, deixem-no sair”, diz o Papa. Ele acrescenta: “Muitos dizem que a Igreja deve condenar isso ou aquilo. Sim, ela condena a moralidade das pessoas, mas as acolhe para ajudá-las a caminhar. Nenhum de nós que está dentro da Igreja é um santo, somos todos pecadores e a Igreja nos ajuda a resolver nossas situações deficitárias”.
O mal de dogmatismos e ideologias
O verdadeiro mal na Igreja são os “dogmatismos” e as “ideologias”. A esse respeito, Bergoglio se lembra de quando, em sua infância, não se podia visitar a lar de divorciados porque eles estavam “em pecado mortal”. “Isso era dogmatismo”, diz ele: ”Precisamos aprender a não nos prender em nossos conflitos e sair do labirinto pelo alto.” Aos jovens crentes, sobretudo, o Papa aconselha que fiquem atentos às ideologias: “Quando você vê jovens que pertencem a essas organizações que são mais ideológicas do que cristãs – de direita, de esquerda, o que for – são pequenos monstros apegados à ideia”.
Austeridade “criminosa” na educação
Olhando novamente para os jovens, o Papa Francisco culpa os modelos econômicos de austeridade na educação e na cultura em certos países: “Fazer austeridade na educação é um suicídio programado de um país. Não se pode fazer austeridade no desenvolvimento educacional de um país, isso é um crime”, enfatiza, sem fazer rodeios. “A educação é um alimento”, e é por isso que “em países um tanto ditatoriais, seja com ditaduras declaradas ou ditaduras disfarçadas”, ela é uma das principais “vítimas”. “Ou a fazem de modo ideológico para mudar sua cabeça, ou, no caso liberal, a podam lentamente, não é? E só os filhos dos ricos podem ter acesso ao ensino superior”, afirma Francisco.
Jubileu, tempo de renovação e perdão
Por isso, o foco no iminente Jubileu, um tempo de “renovação total”. “Às vezes – confessa o Pontífice – temo que seja associado ao turismo religioso”, enquanto “é um tempo de perdão, de felicidade, de recomposição de muitas coisas pessoais e sociais. Um Jubileu que se reduz ao turismo não é útil, isso me assusta”. É por isso que o Papa decidiu estendê-lo a todas as dioceses, “para que cada pessoa em sua própria cidade possa celebrá-lo sem ter que viajar”.
Os riscos da IA
No final da entrevista, um foco na importância da inteligência artificial, que certamente não é isenta de riscos: “A inteligência artificial é um desafio: ou a enfrentamos ou as formigas nos devoram. Temos que enfrentá-la com critérios humanos”. Em seguida, o espaço passa a algumas notas pessoais, como o fato de que ele se sente “um pobre coitado com quem Deus teve muita misericórdia” e não deixa de mencionar as reformas realizadas durante seu pontificado: “As transformações são verdadeiras, porque tinham que ser feitas… Agora o que vem é uma mulher prefeita de Dicastério e se segue adiante. Que as mulheres entrem cada vez mais”. Por fim, um incentivo ao povo argentino: “Continuem lutando, defendam-se das ideologias e não se deixem enganar, lutem por seus direitos”.