A Igreja celebra setembro como mês da Bíblia, desde 1971, em homenagem ao grande biblista e doutor da Igreja, São Jerônimo, falecido em 30 de setembro do ano 420. Como grande legado, traduziu a Bíblia para a língua latina, na versão conhecida como Vulgata (popular), assumida pela Igreja como oficial. O livro bíblico a ser estudado em 2021 é a carta de Paulo aos Gálatas, tendo como chave de leitura o lema: “Pois todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3,28d). Além da perspectiva proposta pelo lema, somos convidados a refleti-la sob o pano de fundo dos seguintes “sinais dos tempos”: a realidade de pandemia da Sars-CoV-2 que fez vir à tona nossas desigualdades e injustiças; as Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora (DGAE, 2019 – 2023) enfatizando os quatro pilares da comunidade de fé: a Igreja como lar do Pão, da Palavra, da Caridade e da Ação Missionária; as polarizações, enrijecimentos ideológicos e eclesiais e o desafio da construção e manutenção da unidade; o pontificado profético do Papa Francisco e seu horizonte de esperança para a Igreja; a 1ª Assembleia Eclesial Latino-americana e Caribenha a culminar, nos dias 21 a 28 de novembro de 2021, no santuário de Guadalupe, no México, com a finalidade de propor um plano decenal de evangelização para a América Latina e o Caribe, retomando as grandes contribuições da conferência de Aparecida (2007), entre elas, a missionariedade da Igreja. A Carta aos Gálatas e o trabalho missionário de Paulo lançam luzes à atividade evangelizadora da Igreja no contexto atual.
Fundada durante a segunda viagem missionária de Paulo (50-52; cf. At 15,39-18,22; 16,6), quando ele parou na região da Galácia para cuidar de um problema nos olhos, a comunidade cristã deu mostras de generosidade com o apóstolo: “me recebeste como um anjo de Deus, como Cristo Jesus… se vos fosse possível, teríeis arrancado os olhos para dá-los a mim” (Gl 4,14.15). Paulo aproveitou a oportunidade e anunciou-lhes o evangelho de Jesus Cristo. Poucos anos depois do anúncio e da frutífera acolhida da boa nova, passou pela Galácia um grupo de missionários judeu-cristãos (judaizantes) ligados à comunidade cristã de Jerusalém e introduziu uma mensagem distinta daquela que Paulo havia pregado. Como condição para acolhida da fé em Jesus, os judaizantes impuseram aos gálatas a necessidade de observar costumes judaicos: a lei do puro e impuro, a circuncisão e a observância do sábado. Os cristãos da Galácia se deixaram seduzir pela proposta (Gl 1,6), abandonando o evangelho da liberdade recebido de Paulo. O ocorrido levou o “apóstolo dos gentios” a escrever a carta em tom impetuoso, colérico e apaixonado, repreendendo os cristãos da Galácia (Gl 3,1-5) e convidando-os à unidade em Cristo Jesus (Gl 4,12-20). Sentia, pois, que estava em jogo não apenas um conflito pessoal entre ele e os judaizantes, e sim a verdade do evangelho (Gl 1,6-10) como consentimento livre pela fé e pelo batismo (Gl 3,26. 27). A autêntica mensagem acerca de Jesus corria o risco de deformação. O conflito na Galácia extrapolava a localidade, dizia respeito à missão cristã entre os gentios, cerca de vinte anos após a morte de Jesus.
A carta aos Gálatas nasceu no bojo da problemática acima citada. Foi escrita por volta dos anos 56/57, na terceira viagem missionária (53 – 58 d. C.), quando Paulo se encontrava em Éfeso e soube do que acontecera na Galácia. Para destrinchar sua riqueza de conteúdo, é necessário compreender sua estruturação. Ela é dividida em três partes: 1ª) O verdadeiro Evangelho e os conflitos de Jerusalém e Antioquia (Gl 1-2); 2ª) Demonstração bíblica: a fé, a liberdade cristã, a unidade em Cristo, a abertura de fronteiras (3,1-5,1); 3ª) A vida no Espírito leva à abertura de fronteiras (Gl 5,2-6,10). Em razão da sua diversidade temática, a carta pode ser lida sob diversas perspectivas: da liberdade em Cristo, da justificação pela fé, e da verdade do Evangelho. A comissão para a animação bíblico-catequética da CNBB escolheu para a reflexão da carta a chave interpretativa da “unidade em Cristo”. Daí a justificativa do lema do mês da Bíblia: “Pois todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3,28).
O lema está situado na segunda parte da Carta, bem no centro dela (Gl 3,26-28), como parte de um hino bastimal herdado por Paulo das primeiras comunidades cristãs. Sua apropriação do hino dá-se em razão de ele exprimir a novidade da mensagem de Jesus aos neófitos, a “nova criatura” (Gl 6,15). “O hino batismal irradia a luz da unidade para todo o conjunto da epístola, como conteúdo, síntese e orientação, permitindo que todas as perícopes possam ser lidas sob sua ótica”. Mais que uma memória, Paulo fez do hino um programa de vida, um projeto de evangelização, um chamado à conversão aos que abandonaram o Evangelho. Sua relevância é tal que ele aparece em outras cartas do apóstolo (1Cor 12,13; Rm 10,12; Cl 3,11). Na conclusão do hino está sua finalidade: “um só em Cristo Jesus” (Gl 3,28d).
A expressão “um só em Cristo Jesus” remete ao projeto da unidade, de ser revestido de Cristo pela fé e pelo Batismo (Gl 3,27), tornar-se filho de Deus (Gl 3,26) e adquirir uma identidade nova, a de batizado. Quem se reveste de Cristo deve superar todas as discriminações e desigualdades: étnicas, culturais, sociais e de gênero. O hino batismal menciona três oposições presentes naquele tempo: judeu x grego, servo x homem livre, homem x mulher. A fé em Jesus, vivida e testemunhada na comunidade, suprime as barreiras étnico-raciais (o evangelho de Jesus se desprende do exclusivismo étnico dos judeus, acolhendo os gentios na fé em Jesus como filhos de Deus), sociais (a comunidade cristã supera a distinção social, admitindo em seu interior escravos e homens livres como um só em Cristo Jesus); e de gênero (a boa nova pregada por Paulo supera o patriarcalismo; pela fé e pelo batismo, homens e mulheres se tornam iguais diante do Senhor; as mulheres colaboram e lideram as comunidades missionárias formadas por Paulo (cf. Rm 16,1-15; Fl 4,2-3; 1Cor 1,11; Fm 2).
A proposta de estudo da carta aos Gálatas, a partir da chave de leitura da unidade, expressa em Gl 3,28d, abre perspectivas e leva a consequências antropológicas e pastorais, entre elas: a abertura de fronteiras e, consequentemente, fim dos sectarismos étnicos, religiosos e sociais; a busca por igualdade e a supressão das assimetrias, inclusive, as eclesiásticas; a valorização da liberdade como condição fundamental da vida cristã diante dos enrijecimentos doutrinais e institucionais; a superação em Jesus Cristo de todas as dicotomias (circunciso x incircunciso, judeu x grego, servo x livre, homem x mulher) na geração da nova criatura (Gl 6,15). Conforme o comentarista da carta Maurice Carrez, “ela é advertência contra o formalismo religioso, contra o aviltamento da fé nos ritos, contra a pretensão orgulhosa de confiar em demasia nos próprios méritos, contra a recusa a abrir-se a situações novas, contra o medo de avançar com audácia no caminho da liberdade e de atingir a maturidade dos filhos de Deus”. Enfim, a carta inspira a vivência da fé em Jesus na comunidade cristã como projeto da liberdade (Gl 5,1.13) e da unidade (Gl 3,26-28), pela ação do Espírito. Ela nos questiona acerca das barreiras hoje construídas e da necessidade de superá-las.