Na aventura das mudanças e adaptações em tempo pandêmico, as religiões, em sua estrutura e dinâmica, com suas doutrinas, ritos, valores e outros, ganharam considerável amplitude no ciberespaço com as tecnologias, promovendo uma verdadeira pandemia de transmissões religiosas: ritos ou celebrações, lives, estudos, comunicados e outros.
Dr. Padre Wladimir Porreca – Diocese de São João da Boa Vista, Paróquia São Sebastião – Mococa/SP
No cenário de mudanças rápidas nas atividades religiosas impostas pela pandemia da COVID-19, o isolamento social e as práticas higiênicas, exigiram das lideranças religiosas criarem alternativas para manterem o vínculo humano e religioso e prestarem a devida assistência religiosa aos adeptos dos segmentos religiosos.
Pelos meios midiáticos grande parte dos líderes religiosos em todo mundo, continuaram as atividades e orientações religiosas, para possibilitar aos fiéis (mesmo aqueles com grandes dificuldades em terem os aparelhos/recursos tecnológicos e em manipular os meios tecnológicos), proximidade as práticas e orientações religiosas e fraternas/solidárias mais acessíveis, minimizando a ausência sofrida nos ritos ou nas celebrações em lugares religiosos costumeiros e o empenho da caridade. Houve uma busca em orientar e valorizar outros componentes dos ritos ou celebrações, redimensionando as partes ausentes, salientando o argumento do bem maior na manutenção e preservação da vida, valorizando o essencial e a criatividade dos componentes presentes e possíveis. E ainda apelos e ações solidárias concretas constantes em prol da coletividade.
Na aventura das mudanças e adaptações em tempo pandêmico, as religiões, em sua estrutura e dinâmica, com suas doutrinas, ritos, valores e outros, ganharam considerável amplitude no ciberespaço com as tecnologias, promovendo uma verdadeira pandemia de transmissões religiosas: ritos ou celebrações, lives, estudos, comunicados e outros. Se os corpos ficam em lar, pelo menos os olhos, os ouvidos, as mentes e os corações tentam sair, achar-se, por isso não tardaram em se conectar. Com reinvenção do rito, do culto e das práticas religiosas e outras atividades religiosas, a adaptação a realidade pandêmica evidenciou e instalou “novos” modelos religiosos mais descentralizados da liderança religiosa, bem como, uma grande preocupação de como serão as atividades religiosas pós pandemia (Grillo, 2020; Hott, 2020).
No que se refere às questões financeiras, é relevante descrever que muitas organizações religiosas fizeram também reformulações administrativas, promovendo uma contenção de gastos e inúmeras iniciativas para se criar e ampliar formas de arrecadação de dinheiro. Abriram-se outras frentes de promoção e venda, sejam elas de comida delivery, bazares e leilões on line, coleta e ofertas via internet e tantos outros meios de obtenção de recursos financeiros, sem negar, reduzir ou ignorar as restrições e orientações sanitárias, afinal era preciso manter as finanças dos lugares religiosos.
Outro fator relevante que merece ser considerado na adaptação é o fato de os fiéis reassumirem os princípios da esperança e da caridade/solidariedade, podendo adquirirem a capacidade de se resignificarem como pessoa religiosa, asseguradas em sua fé, que, sem saírem da realidade pandêmica, aventuraram-se a construir um olhar de possibilidades para retomarem e revalorizarem alguns valores esquecidos, bem como em concretizar ações anteriormente idealizadas.
Nem todas as lideranças e adeptos religiosos conseguiram atingir níveis considerados de adaptação e seguirem as restrições e orientações sanitárias de manter e ampliar o isolamento social ou seguir os protocolos para a volta gradual para conter o avanço do SARS-CoV-2. Alguns líderes religiosos hindus, judeus, cristãos, mulçumanos e budistas, em especial, assumiram e mantiveram inúmeras resistências em mudar os hábitos e costumes religiosos, desde aqueles que negavam veementemente a existência do vírus, até aqueles que garantiram a sua cura (McLaughlin, 2020).
Negacionismo
Alguns desses líderes assumiram uma postura negacionista, outros reducionista e outros, ainda, de conveniência, optando por negar ou diminuir e/ou desviar a gravidade da COVID-19, colocando a si mesmos e a seus seguidores em situação de risco de contaminação da doença, com possíveis mortes e criação de potenciais disseminadores do novo coronavírus. Alguns desses religiosos, não em sua maioria, enfrentaram penalidades civis, descréditos e críticas em suas comunidades religiosas, na opinião pública e na mídia, pelas atitudes irresponsáveis e contraditórias ao seu papel religioso.
A postura negacionista de alguns religiosos, apoiados em teorias e discursos conspiratórios, contraditórios e sem aprofundamentos, em antítese às evidências médicas, aos dados científicos, à mídia, disseminaram o vírus da desconfiança, apoiados nos princípios morais que lhes eram elencados, com conteúdos religiosos admissíveis, facilitando a aceitação, por seus seguidores, de uma posição negacionista. Esses religiosos discordavam do isolamento social e das orientações das autoridades sanitárias e insistiam em manter seus lugares abertos, com aglomeração de pessoas nos ritos ou nas celebrações, como se a doença respiratória COVID-19 não existisse.
Com essa postura negacionista, desenvolveu-se e ampliou-se o fenômeno de desinformações de realidades verdadeiras da COVID-19, não somente como informações falsas, mas também enganosas, imprecisas e inconclusivas. Os grupos religiosos são lugares férteis para a propagação de informações por serem considerados confiáveis, não somente pela liderança – como um rabino, pastor(a), padre, mestre(a) e outros(as) – mas também pelos adeptos, pois é um grupo de considerada afeição, apoio e credibilidade.
No Brasil, o Coletivo Bereia publicou um levantamento realizado em sites religiosos (12/12/2019 – 9/06/ 2020) e atividades digitais checados pelo Coletivo, sobre a desinformação com temática religiosa. Os 53 artigos que compuseram a análise foram assim classificados: 23% verdadeiros, 30% enganosos, 17% imprecisos, 2% inconclusivos e 28% falsos. No total, 77% eram informações cuja veracidade não pode ser confirmada (Classificação de Notícias Bereia, 2020).
Reducionismo
Um outra parcela das lideranças religiosas assumiu uma postura reducionista, em que se diminuía a gravidade da disseminação do vírus e o perigo da doença, buscando assegurarem-se nos princípios do fideísmo, isto é, utilizavam a doutrina da exclusividade da fé pela fé: só se aceita a fé sobrenatural na busca de certezas e verdades, só ela é capaz de conhecer a verdade.
Nos princípios fideístas, há um isolamento da razão humana, esta é incapaz de atingir o verdadeiro conhecimento e de interpretar a existência, portanto, também a ciência seria impotente para alcançar as verdades sobre a pandemia da COVID-19 e só Deus poderá livrar e proteger as pessoas de qualquer doença ou mal. Essa é uma postura de que o humano seria incapaz de se salvar da doença, somente Deus poderia protegê-lo e livrá-lo. As pessoas não seriam contaminadas simplesmente porque tinham fé. Várias crenças nessa direção fideísta propagavam que, ao serem utilizados os recursos da prevenção sanitária, se estaria desconfiando da força de Deus e da sua proteção, portanto, seriam infiéis e ingratos.
O fideísmo garante a fidelidade dos seguidores aos líderes religiosos, os quais os alimentam e os mantêm dependentes, em grande parte. Essa prática é utilizada por lideranças religiosas que se asseguram na teologia e prática “milagreira e da cura”, cujo poder do líder religioso realizaria tal proeza.
Convenientes
Outras posturas convenientes de resistência ao isolamento social e práticas sanitárias foram tomadas por variados grupos de líderes religiosos. Destacam-se os que assumiram e rejeitaram o quê e como lhes mais convinham, em relação ao isolamento social e às práticas de prevenção. Nota-se que esse grupo resistiu parcialmente às mudanças, não as contrapunha de forma clara e autêntica, tinha consciência da gravidade da contaminação e da doença, era cauteloso e mantinha as mesmas atividades religiosas, sem conflitos e, de maneira não explícita, procurava brechas sanitárias e religiosas para manter o que, ideologicamente individual, impunha como prática religiosa comum.
A postura de resistência de conveniência, além de ser um exercício perigoso do poder religioso, pode expressar uma crise de identidade e/ou absentismo da liderança religiosa que o exerce, pois esta não conseguiria redimensionar as suas atividades religiosas fora do seu controle e de seu padrão de funcionamento.
A resistência em aceitar o isolamento social também passa pelas questões financeiras e econômicas das religiões. Com a suspensão dos ritos ou das celebrações presenciais, por tempo indeterminado, as coletas, ofertas e doações ficaram reduzidas e colocaram as finanças das religiões em alerta de falência econômica. Normalmente, os lugares religiosos e o vínculo com os adeptos são centrais para o funcionamento da religiosidade; sem o espaço territorial não há presença de pessoas; portanto, as atividades também não acontecem e a economia fica frágil. Sem dinheiro, toda a estrutura religiosa é prejudicada. Por mais espiritual que seja, tanto a liderança como o lugar são materiais.
E os meios tecnológicos nem sempre garantem doações substanciosas dos adeptos.
Considerações
As adaptações e reações religiosas nesse tempo inesperado de pandemia da covid19 com os seus contornos e limites na existência humana, podem ser uma companhia eficaz e eficiente, porque não, sadia e saudável, na convivência consigo e com o outro no contexto que estamos inseridos. Mas podem ser uma companhia de risco, se não nos impulsionar a seguir sem nos distrair, ou deixar-nos levar por qualquer “solução”, proposta, explicação, a fim de distrair-nos ou ausentar-nos da realidade da provocação de vivermos intensamente esse tempo de grande aprendizagens e oportunidades, ou mesmo em esvaziar o acontecimento que nos alcançou, reduzindo-o a um âmbito de relações que nos proteja do impacto das coisas, no esforço de manter o velho estilo de vida que não nos cabe mais, ou ainda, que nos poupe do desafio das circunstâncias de renascer pessoas mais humanas, que se deixam estar suspensos e serem arrastadas para o caos da pandemia (Carron, 2020; Porreca, 2020; Giussani, Alberto & Prades, 2019).
Referências:
Carrón, J. (2020). Carta ao movimento Comunhão e Libertação. Disponível em:
https://por.clonline.org/cm-files/2020/03/13/jc-lettera-frat-coronavirus-120320-por.pdf
CLASSIFICAÇÃO DE NOTÍCIAS BEREIA. (2020). Sites religiosos e ativistas digitais que propagam desinformação. Informação e Checagem de Notícias. 2020. https://coletivobereia.com.br/sites-religiosos-e-ativistas-digitais-que-propagamdesinformacao/.
Grillo, A. (2020). Liturgia – COVID-19: diversamente Chiesa: Come essere assemblea celebrante in tempo di pandemia. Il Regno Attualità, 8, 200-202.
Hott, M. C. M. (2020). Ciberespaço em pandemia: eficácia das “Lives” espiritualistas na saúde mental. InterAmerican Journal of Medicine and Health, 3, 1-9.
Doi.org/10.31005/iajmh.v3i0.129
McLaughlin, Levi. (2020). Japanese Religious Responses to COVID-19: A Preliminary
Report.https://repository.lib.ncsu.edu/bitstream/handle/1840.20/37530/McLaughlin%20
-%20Japan%20COVID.pdf?sequence=1&isAllowed=y
Giussani, L., Alberto S. & Prades J. (2019). Deixar marcas na história do mundo. São
Paulo: Cia. Ilimitada)
Porreca, W. (2020). Espiritualidade/Religiosidade: possíveis companhias nos desafios pandêmico-Covid-19. Caderno de Administração, 28, E, 141-146.
Doi.org/10.4025/cadadm.v28i0.53632