“Ficarmos pela superficialidade nos processos nunca nos permitirá enfrentar esses processos com verdade”, alerta o sacerdote, especialista em sinodalidade, no episódio 4 da iniciativa “No coração da esperança”, proposta pela Rede Sinodal em Portugal.
Rui Saraiva – Portugal
A iniciativa “No coração da esperança” da Rede Sinodal em Portugal continua a produzir conteúdos sinodais e nesta fase de receção do Documento Final do Sínodo apresenta agora o episódio 4 desta produção.
Num trabalho desenvolvido em parceria com Diário do Minho, Voz Portucalense, Correio do Vouga, Correio de Coimbra, A Guarda, 7Margens, Rede Mundial de Oração do Papa e Folha do Domingo, a Rede Sinodal em Portugal publica a segunda parte da entrevista ao especialista em sinodalidade, padre Sérgio Leal.
P- Na primeira entrevista desta iniciativa, Tomás Halik pediu um milagre para que padres e bispos não se limitem a fazer da aplicação do Documento Final do Sínodo uma simples mudança cosmética. Corremos esse risco?
R- “Se é de um milagre que precisamos, estamos no caminho certo. O nosso Deus é o Deus dos milagres e o Deus capaz de realizar maravilhas e tornar possíveis os impossíveis da nossa vida. Contudo, diria, que nós estamos a trabalhar, ao percorrer este caminho sinodal, estamos num processo de sonhar – para usar esta categoria que o Papa Francisco usa tantas vezes – de sonhar uma Igreja que ainda não existe, uma ação eclesial que tem que ser nova e renovada para o contexto social e cultural hodierno. Portanto, uma Igreja que se sabe sempre nascida do coração de Cristo e, por isso, chamada a tornar presente no mundo o Evangelho que é Jesus Cristo e de achar esta nova forma de ser Igreja, que é nova, no sentido de uma ação cada vez mais renovada e capaz de ser compreendida pelos homens e mulheres de hoje.
E se estamos a sonhar um modo novo de ser Igreja, então é preciso também sonhar um modo novo de ser presbítero, de ser diácono, de ser cristão leigo, de ser religioso, religiosa e até de ser bispo. E, portanto, este processo de discernimento precisa disto: perceber que estamos a voltar ao centro daquilo que é a Igreja, um povo que caminha na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Na Igreja caminha a imagem da Santíssima Trindade. E que, portanto, se há de refazer e construir sempre a partir daqui. A partir de Cristo, para melhor fazer presente no mundo o Evangelho que é o próprio Jesus Cristo. E neste exercício é absolutamente indispensável e necessário deixar para trás aquilo que já não serve para o tempo de hoje.
Eu costumo dizer sempre que, do ponto de vista da projeção pastoral, existem três questões fundamentais: O que manter? Aquilo que é essencial e não podemos deixar. O que é que temos que deixar? Porque já não serve para a resposta que somos chamados a dar hoje. E o que é que havemos de criar de modo novo para sermos melhor resposta, acolhendo quer o desafio de Cristo em primeiro lugar, que nos envia, e do mundo para o qual Ele nos envia.
E nesse sentido há aqui que repensar também uma nova forma de ser pastor, uma nova forma de ser bispo e de ser padre, que mantém aquilo que é imutável e essencial do ministério ordenado, como ministério de raiz trinitária, como ministério que não é de origem sinodal, porque nasce do mandato próprio de Cristo. “Ide por todo o mundo, fazei isto em memória de mim. Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados.” Um ministério que é estruturante para a vida eclesial.
O documento da Comissão Teológica Internacional dizia que a sinodalidade acontece no interior de uma Igreja hierarquicamente organizada. O Papa Francisco, no final deste processo sinodal, dizia que a sinodalidade oferece a chave interpretativa para compreender o ministério hierárquico. E aqui haveremos sempre de voltar à dinâmica evangelizadora de Jesus. Jesus, como um enviado do Pai, que tem como interlocutor as multidões. Uma multidão que não é uma massa anónima, abstrata, porque ele interpela de modo direto e particular. Diz à samaritana, “Dá-me de beber”. Ao Zaqueu, “Desce depressa, quero ficar em tua lar.” À mulher adultera, “Vai e não tornes a pecar”. Isto é, de um Jesus que é enviado do Pai, que tem como primeiro interlocutor as multidões, mas que depois se dirige a cada um em particular.
Mas de entre as multidões escolheu 12, a quem confiou um ministério muito particular. E, portanto, esta dinâmica evangelizadora deve estar presente neste configurar e reconfigurar da Igreja. De percebermos como a Igreja sem Jesus é uma ONG, como diz o Papa Francisco, tantas vezes. Uma Igreja sem as multidões seria uma elite de iluminados. Mas uma Igreja sem os 12 seria uma Igreja sem esse garante de catolicidade e de apostolicidade.
E é nesta comunhão e unidade na diversidade de dons, carismas e ministérios que haveremos de repensar também o ministério ordenado. Um ministério ao serviço da comunhão e da promoção dos diversos dons e carismas, de uma pastoral que não se repensa mais do ponto de vista clerico-cêntrico. Que diria que ainda é confortável, quer para os clérigos, quer tantas vezes para os leigos, que relegam as decisões unicamente para o pároco. Do pároco que chama a si todas as coisas. Mas aqui um repensar do ministério ordenado a partir de uma nova comunhão e diversidade, que implica também um renovar daquilo que o Concílio Vaticano II já apontava para repensar.
Por exemplo, o ministério do presbítero. Porque revalorizada a sua categoria de comunhão, a fraternidade presbiteral, o percebermos que o nosso ministério ordenado já não se pode configurar mais de modo autorreferencial, mas que tem que ser na comunhão do presbitério, na comunhão com o seu Bispo, de um bispo que vive em primeiro lugar a comunhão com o seu presbitério, para que esse presbitério possa ser o lugar da comunhão, e depois promotor da comunhão nas diferentes comunidades que lhes estão confiadas.
E é esta nova forma de ser pastor, que implica um renovar também dos itinerários formativos. Desde o itinerário formativo da formação inicial nos nossos seminários, à formação permanente que as dioceses oferecem, ao acompanhamento dos padres nos seus primeiros anos, mas não esquecendo que os padres com mais anos também precisam de acompanhamento e de proximidade.
E é esta Igreja sinodal próxima, de proximidade dos pastores com os fiéis, de proximidade do bispo com os seus presbíteros, dos presbíteros entre si, dos diáconos como colaboradores desta Igreja sinodal, que podemos repensar e operar esse milagre para usar as palavras do Tomáš Halík, para operar esse milagre que não pode de facto ser uma operação de cosmética, porque ficarmos pela superficialidade nos processos nunca nos permitirá enfrentar esses processos com verdade e com aquilo que eles necessitam de verdade para gerar uma nova consciência eclesial.”
O padre Sérgio Leal é docente da Universidade Católica Portuguesa e pároco de Anta e Guetim na diocese do Porto. O sacerdote licenciou-se em 2018 na Universidade Lateranense sobre a sinodalidade como estilo pastoral e concluiu doutoramento em 2024 na mesma universidade pontifícia com uma tese sobre o exercício do ministério pastoral numa Igreja sinodal. Tem colaborado com muitas dioceses portuguesas e também no Brasil e partilhou as suas reflexões em dois episódios desta iniciativa da Rede Sinodal em Portugal.
Laudetur Iesus Christus