Entrevista com o prêmio Nobel da Economia em 2006, Muhammad Yunus, criador do microcrédito. O economista tem ideias claras sobre o que fazer em um mundo mudado pela pandemia. Antes de tudo, proteger todos do vírus, graças a uma vacina que deverá ser declarada “bem comum global”. Depois, simplesmente, projetar um mundo novo.
Andrea Monda
“Quando soubermos para onde ir, chegar lá será muito mais fácil”. Muhammad Yunus, economista, Prêmio Nobel da Economia em 2006, criador do microcrédito moderno, tem ideias bastante claras sobre o que fazer em um mundo potencialmente mudado pela pandemia. Antes de tudo, proteger a todos, o mundo inteiro, do vírus, graças a uma vacina que seja declarada “bem comum global”. Depois, simplesmente, projetar um mundo bem diferente.
O senhor ressaltou, em sintonia com o Papa, que após a crise da Covid-19 será necessário achar um novo modelo. Não podemos voltar atrás; nada será o mesmo de antes. Na sua opinião, como esta mensagem pode ser compreendida pelos que estão no poder?
Muhammad Yunus: Fico muito satisfeito em ver que o Papa Francisco pensa exatamente como eu. Voltar ao velho mundo seria um ato insensato, porque o mundo de onde viemos é um mundo muito inóspito, um mundo aterrorizante, um mundo que estava morrendo com o aquecimento global, a concentração da riqueza, a inteligência artificial que tirava trabalho aos seres humanos. Naquele momento, tudo convergia e só restavam alguns anos antes do colapso do mundo inteiro. Do ponto de vista do aquecimento global, resta muito pouco tempo até que o mundo se torne inabitável. O mesmo se aplica à concentração da riqueza, que é uma bomba relógio que pode explodir política e socialmente, com muita raiva, e também à inteligência artificial, por causa da qual não haverá mais trabalho ou emprego para as pessoas. Não é o tipo de mundo para o qual queremos voltar. Essa é a questão. E o coronavírus nos fez um grande favor ao criar uma situação terrível para o planeta, porque parou a máquina em sua corrida para a morte. Portanto, hoje, pelo menos, não estamos correndo para nenhum lugar. O trem parou. Podemos simplesmente olhar em volta, podemos sair do trem que nos levou a um determinado fim e decidir onde queremos ir para achar certeza e segurança. Certamente não queremos voltar atrás: esse é o ponto. Não voltar significa que temos a possibilidade de ir a outro lugar…
Mas e se as pessoas que estão em altos cargos e os que tomam as decisões não o aceitarem?
Muhammad Yunus: Bem, se as pessoas quiserem ir a outro lugar, os que tomam decisões não têm muita escolha. No final, são as pessoas que decidem para onde ir. Isso é democracia. Se a opinião pública se fortalecer, creio que não se possa ignorá-la. Tento encorajar os jovens a olhar para a situação e para depois tomar uma decisão. São adolescentes que marcham pelas ruas com as faixas “Fridays for Future”. Dizem ao mundo que estamos no caminho errado. Acusam seus pais de serem irresponsáveis e que os empurram para um mundo sem porvir para eles.
Trata-se de convencer as pessoas em geral e os jovens em particular. É uma questão de comunicação. Se o Papa Francisco assume a liderança, a mensagem torna-se imediatamente poderosa. O pensamento do Papa é respeitado globalmente, independente da filiação religiosa. Recordemos o impacto que suas opiniões tiveram nas negociações de Paris para chegar a um consenso sobre a crise ambiental global. Seu apelo ao mundo ajudou a alcançar o Acordo de Paris. O Papa Francisco pode desempenhar um papel muito relevante neste momento. Peço-lhe que desempenhe este papel com firmeza.
Recentemente o senhor declarou que a retomada depois da pandemia é repleta de oportunidades, mas somente se passar por uma nova consciência social e ambiental, um uso da economia não como uma mera ciência para maximizar os lucros, mas sim como uma ferramenta para alcançar a felicidade dos indivíduos e da comunidade. Como podemos atingir este objetivo?
Muhammad Yunus: Explicando às pessoas o que é este objetivo. E que estava errado, porque não temos que voltar atrás. As pessoas conhecem os perigos do velho mundo, mas não estão cientes das oportunidades criadas pela crise do coronavírus para escapar desses perigos.
Preocupa-se apenas em como aumentar a riqueza das nações sem se questionar quantas, ou quão poucas, as pessoas recebem essa riqueza. Não se preocupa nem mesmo com a segurança do planeta. No máximo, podemos chamar a economia de ciência empresarial, não de ciência social. A ciência social deve abordar os problemas da sociedade, o que é bom para as pessoas, o que é bom para o planeta, e deve propor ideias que tornem a vida das pessoas melhor e o planeta mais seguro. Para alcançar um novo mundo, devemos redesenhar a economia e dar-lhe uma orientação social. Deverá ser uma economia movida pela consciência social e ambiental. A economia atual nunca reconheceu o interesse coletivo. Baseia-se apenas em seu próprio interesse. Se incluirmos o interesse coletivo na economia, imediatamente ela se torna diferente. Precisamos de dois tipos de economia, uma para maximizar o lucro e outro para resolver os problemas comuns das pessoas, com zero de lucro pessoal. A mesma pessoa pode fazer as duas coisas. Não precisamos de duas pessoas diferentes para fazer isso. Em um tipo de economia uma pessoa cuida de si mesma e no outro cuida de todos os outros e do planeta. Eu chamo este novo tipo de economia de economia social. Esta é a economia que se compromete em resolver os problemas das pessoas e do planeta sem qualquer intenção de ganho pessoal. Esta nova economia será a base para a construção do novo mundo.
O senhor lançou uma iniciativa a favor de uma vacina gratuita e acessível a todos. Em situações como esta da Covid, como é possível tirar a pesquisa médica da lógica do lucro?
Muhammad Yunus: Devemos chegar ao fundo da questão. Não é correto dizer que as empresas estão gastando dinheiro para desenvolver a vacina. Na maioria dos casos, são as universidades que contribuem com seu conhecimento e criatividade e os governos que pagam grandes somas de dinheiro para a pesquisa, especialmente a pesquisa de vacinas. Por que as universidades deveriam desistir de seu direito? Por que o governo deveria desistir de seu direito? Não estou negando às empresas um retorno justo de seus investimentos. Podemos discutir quão grande foi o investimento e qual deveria ser o retorno correto. As empresas podem ser pagas para tornar a vacina um bem comum global. Mas a propriedade deve pertencer ao povo, não a uma empresa. Deve ser um bem open source, para que possa ser produzida em qualquer lugar, por qualquer pessoa, respeitando todos os requisitos regulamentares. Se quisermos torná-la acessível às pessoas em todo o mundo ao mesmo tempo, deve ser produzida em todo o mundo. Não apenas em um ou dois lugares, como vemos que está sendo feito agora. Uma empresa já declarou que as primeiras vacinas produzidas serão entregues nos Estados Unidos, outra que as primeiras irão para a Europa. E quanto ao resto do mundo? Se não for dada a vacina para o resto do mundo, haverá outro problema. Será criada imediatamente uma nova mega atividade de produção e venda de vacinas falsas. Levará tempo para que a vacina real chegue a bilhões de pessoas, portanto a dificuldade de acesso a ela levará a esta situação. As pessoas nos países pobres serão vítimas deste comércio, pois não podem competir com os principais fornecedores no mercado de vacinas genuínas. Antes que tal situação surja, o mundo deve declarar a vacina como um bem comum mundial. Ontem, fiz um apelo aos líderes mundiais, que foi assinado por muitas figuras importantes de todo o mundo. Repito este apelo através de vocês, a fim de pressionar os governos a fazer esta declaração o mais ligeiro possível: fazer da vacina para a covid-19 um bem comum mundial. Peço ao Papa Francisco que apoie esta iniciativa com sua poderosa voz.
Como disse o Papa, a pandemia, além de ser uma tragédia planetária, representa uma oportunidade para desenvolver um porvir diferente. Como o senhor imagina este porvir ou como vê o novo equilíbrio mundial?
Muhammad Yunus: Concordo plenamente com as palavras do Papa. Fez uma afirmação clara: não devemos voltar atrás. O Papa Francisco deve continuar a repeti-lo de modo audaz para que todos possam ouvi-lo. Atualmente o Papa é a voz ética do mundo inteiro. É, portanto, muito relevante que continue insistindo nesta questão. Sim, é possível mudar este mundo. Os homens podem fazer tudo o que querem. É a força de vontade que torna possível. Quando decidimos não voltar atrás, precisamos desenvolver políticas, instituições e estruturas para garantir que vamos na direção certa e chegamos lá rapidamente. Devemos pedir aos governos que canalizem seus fundos de resgate para apoiar iniciativas destinadas a não voltar atrás em vez de acelerar o processo oposto. Os recursos não são um problema: alguns já foram mobilizados para os fins errados. O compromisso é de colocá-los na causa certa. Precisamos de um mundo novo construído para nós. Que tipo de mundo tem que ser? Claro que tem que ser um mundo muito diferente daquele de onde viemos. No mundo novo, não haverá aquecimento global. O Papa Francisco já falou sobre isso. Agora temos que torná-lo realidade. Não se trata simplesmente de uma declaração feita pelo Papa: devemos todos nos unir e traduzi-la em realidade. O mundo novo será um mundo com zero emissões de carbono. Será um mundo com concentração zero de riqueza. Será um mundo onde a riqueza será compartilhada em vez de monopolizada, como fazemos hoje. Será um mundo com desemprego zero. O mundo novo será quase exatamente o oposto do atual.
Para avançarmos para o novo mundo, precisamos ver quais atividades contribuem para o aquecimento global, a concentração de riqueza ou o desemprego. Devemos criar pontos de controle para evitar que as atividades erradas entrem neste novo mundo. Não podemos trazer a economia dos combustíveis fósseis para o novo mundo. Temos que dizer: volte com energia renovável se você quiser permanecer no setor de energia. Se é uma empresa que produz poluição, diremos para voltar com atividades que criem uma economia circular.
O senhor acha que isso pode acontecer?
Muhammad Yunus: Se nos decidirmos, isso pode acontecer. Trata-se de tomar uma decisão. Estamos enfrentando o maior desafio existencial. Quando a crise está no seu auge, devemos propor as soluções mais ousadas.
O senhor acredita que a espiritualidade é relevante para esta mudança, a força para provocar esta mudança?
Muhammad Yunus: Sim, é muito relevante. O coronavírus mudou tudo, criando uma situação em que não podemos nos achar fisicamente. Somos forçados a permanecer fechados dentro de nossas casas e o distanciamento social se tornou parte de nossas vidas. Sendo privado de proximidade física, a vida se torna uma boa oportunidade para alcançar a unidade espiritual.