Cuidado: a virtude irrenunciável do nosso tempo

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O filósofo e bibliotecário romano Caio Julius Higino (67a.C. – 07d.C.), conta-nos uma fábula que fala do cuidado como algo inerente à natureza humana.

“Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma ideia inspirada. Tomou um pouco do barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter. Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado. Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da Terra. Originou-se então uma discussão generalizada. De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa: “Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro moldou a criatura, ela ficará sob seus cuidados enquanto ela viver. E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil”.

É preciso ficar claro que o cuidado é intrínseco à natureza humana; numa via de mão dupla: o ser humano é ser que cuida, mas também depende de ser cuidado. Feito do frágil barro da terra, o homem carrega consigo a efemeridade do húmus. Segundo a fábula de Higino ele fica sob a proteção do Cuidado enquanto viver, justamente porque é frágil, fugaz, perecível. Só viverá bem se for permanentemente cuidado. No livro do Gênesis, onde o homem também é criado a partir da terra, vemos como Deus cuida do ser humano pondo-o para viver num jardim abundante em espécies e rico em água (Gn 2,4b-25) e exortando-o para que “cultive e guarde o jardim” (Gn 2,15). O jardim é para ser cultivado e fruído, não para ser devastado. No mesmo livro testemunhamos ainda a cobrança que Deus faz a Caim sobre o paradeiro do seu irmão: “Onde está o seu irmão, Abel?”. Esta responsabilidade pelo outro é apelo feito a cada um ao longo da história. Cada pessoa tem o compromisso de cuidar de si e do outro. Essa reciprocidade no cuidado garante o equilíbrio do bem-viver.

Temos acompanhado com muita dor, angústia e porque não dizer também, com indignação, as catástrofes ambientais, sociais e, por extensão, políticas, que têm assolado muitos dos nossos irmãos nos Estados da Bahia, São Paulo, Minas Gerais e nos últimos dias na região serrana do Rio de Janeiro. São milhares de pessoas que têm suas vidas afetadas diretamente em vários aspectos pelos desmoronamentos das encostas, cheias dos rios, disfunções/ineficiências da engenharia e arquitetura das cidades, descaso dos poderes públicos que pouco ou nada fazem para minimizar ou resolver previamente, em tempos de estiagem, todos os problemas que são facilmente identificáveis. Justifica-se, na temporada das chuvas, que medidas não podem ser tomadas por causa das próprias chuvas; mas o que vemos na realidade é uma inércia e uma displicência indecorosas dos organismos públicos diante dos problemas e sofrimentos do povo, especialmente do povo mais empobrecido.

É certo também que essas catástrofes são o começo de uma fatura que começa a chegar para nós por todo o “mau-trato” que temos dedicado ao planeta, à nossa Mãe-Terra. Esse “mau-trato” com nossa lar comum é fruto de uma mente e um coração adoecidos, intoxicados pelo insaciável desejo do ter, ter e ter. Enganosamente pensamos que ter uma infinidade de objetos preencherá a busca pelo sentido do existir, inata a todo ser humano. Nossas violências e agressões à Mãe-Terra revelam o que de mais fundo habita nossas mentes e corações: uma mente e coração gananciosos, ávidos, vorazes, predadores e de-predadores. É preciso recuperarmos dos nossos ancestrais a experiência do cuidado com o outro e com o planeta; do cultivo que permite a fruição sem devastação e destruição.

Em muitas situações nos Evangelhos Jesus nos ensina sobre o cuidado. Fala sobre o cuidado de Deus com os pássaros e os lírios dos campos e mais ainda com o ser humano que vale muito mais que aqueles. Fala do gesto cuidadoso do samaritano com o homem caído à beira do caminho, do pastor que busca a ovelha que se perdeu; Ele próprio cuida das dores e doenças que ameaçavam a vida de tantas pessoas do seu tempo, apieda-se da dor da viúva que acompanha o funeral do seu filho, acolhe a mulher flagrada em adultério e que corre risco de ser morta, critica de forma mordaz aqueles que, ocupando lugares de liderança e poder, devoram a vida do povo etc.

Sem a dimensão do cuidado estamos caminhando a passos largos em direção à nossa autodestruição, cavando nós mesmos a nossa extinção. O cuidado deve ser hoje uma virtude irrenunciável. Uma atitude cotidiana de alcance local e planetário. A pequena atitude de cuidado, defesa e preservação realizada no lugar onde vivo reverbera positivamente em toda a criação. A atitude de outros reverbera em mim. É nessa grande teia holística que podemos nos salvar.

Por Virlene Mendes

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