A estupidez e a alienação crescem no Brasil assustadoramente nos últimos anos. Sempre acompanhadas por ódio, cólera, raiva pelo discurso do desespero e da divisão inoculado pela mídia e pelas instituições que deveriam zelar pela paz e pela verdade. O povo brasileiro sempre tão alegre e otimista está sendo aferroado por grilhões de colonialismo cultural e vilipendiado pela cegueira ética gritante, produzindo monstros sem compaixão em todas as classes sociais. As pessoas nas grandes cidades vivem na amargura e na depressão. Haveria remédio para tanta bílis acumulada? Creio que sim. Onde estaria a terapia restaurativa? Onde recobrar o amor primeiro? Seu nome é serenidade e se apresenta de muitos modos.
O dicionário nos diz que é uma qualidade ou estado do que é ou está sereno. Ou seja, um estado de paz interior. Especialmente é exigida a serenidade quando estamos diante de fatos adversos, pessoas grosseiras e situações que se tornam pesadelos e dores permanentes. Sereno é alguém capaz de ampliar seu coração tal qual um oceano para receber os rios caudalosos e avassaladores ainda mantendo a suavidade e a lucidez. O Brasil só será completo se cultivar essa virtude da placidez e tranquilidade que nos faça ultrapassar esse momento obscurantista em que fomos enfiados a contragosto e injustamente. Precisamos voltar a viver o tempo bom advindo de nossa alma e de nossa vida fraterna e gentil. Afinal, gentileza gera gentileza.
Serenidade psíquica
O psiquiatra Flávio Gikovate afirma que “um aspecto muito relevante para a questão da serenidade é a competência dos indivíduos para lidar com o tempo. Um exemplo disso é a inquietação que toma conta de muitos quando, presos no trânsito, não conseguem chegar a um encontro na hora marcada. Apesar do atraso não ser da responsabilidade deles, sofrem e se sentem por vezes até mesmo culpados pelo que está acontecendo. Chegam ao local, esbaforidos, e demoram um bom tempo para se recuperarem de um problema que, como regra, não tem a menor importância concreta”. Acrescenta esse médico da alma humana: “Saber esperar é uma das virtudes mais raras que tenho conhecido e certamente contribui enormemente para que uma pessoa desenvolva esse estado de calmaria correspondente à serenidade”.
Perdemos a serenidade quando andamos muito devagar, perto da condição do ócio – que traz o tédio e a depressão – e também quando nos tornamos angustiados pela pressa de atingirmos logo nossas metas. Mais uma vez, a sabedoria, a virtude está no meio, naquilo que Aristóteles chamava de temperança: cada um parece ter uma “velocidade ideal”, de modo que se andar muito abaixo dela tenderá a se deprimir, ao passo que se andar muito acima dela tenderá a ficar muito ansioso.
Serenidade filosófica
Norberto Bobbio produziu um “Elogio da Serenidade”, publicado na Itália em 1983 onde afirma que ela é uma virtude passiva associada a não violência. Não deve ser confundida com a submissão nem com a concessão. É ela quem nos ajuda a vencer os preconceitos e a intolerância que são da esfera do não racional. Bobbio afirma que o homem sereno aceita o outro. Para Bobbio alguém sereno não se exalta, mas se vê igual aos demais. Assim a serenidade é oposta a insolência, ou seja, aquele que ostenta a sua arrogância. Quem é sereno não ostenta nem a serenidade. Quem é inteligente não se vangloria, pois seria um estúpido. Quem ostenta a caridade, certamente não a tem.
Serenidade como um evangelho em tempos de estupidez
O texto bíblico traz três menções no livro sapiencial dos Provérbios quanto à palavra sereno. A primeira no capítulo 14,30 onde lemos: “um coração sereno é a vida para o corpo, mas a inveja é cárie nos ossos”. A segunda em 15,4: “a língua serena é árvore de vida, e a língua perversa quebra o coração”. A terceira em 17,27: “Quem retém suas palavras tem conhecimento e o espírito sereno é pessoa inteligente”. O sábio nos oferece o antídoto para as cáries nos ossos, a quebra do coração e a ignorância e insensatez. A serenidade produz corpos sadios, corações completos e, sobretudo, uma inteligência para o bem-viver. Não se impõe, nem tripudia, sabendo no que crê e vislumbrando o que busca porque já o experimentou em si mesmo. A fragilidade do sereno é sua fortaleza.
Para que não fiquemos desesperados e raivosos numa vida medíocre e estúpida, Deus de tempos em tempos envia mensageiros, profetas, sábios e pessoas serenas para indicar o caminho e revelar o segredo da paz interior. Na história recente de nosso Brasil um luminar da serenidade foi Dom Luciano Mendes de Almeida (1930-2006). Ele nos ensinou em gestos, palavras como sermos serenos, sem movimentos bruscos, amplificando corações e mentes. Era um homem suave e profundamente discreto. A humildade diante da pessoa humana o fez encurvar-se e sempre questionar como mote de vida e afeto: “Em que posso lhe servir”. Homem equilibrado, sensato e sempre ao lado dos que sofriam. Não era neutro na forma diplomática ou asséptica. Era parcial de forma profunda e radical. Sua parcialidade era tal qual a do coração de Deus. Do tamanho do coração de Jesus. Começando pelo último e almejando chegar a todos. Sempre que estávamos com ele, sentíamos que nosso coração pulsava e queríamos que ele nos revelasse o segredo da fonte da juventude e serenidade que ele de forma evidente nos demonstrava. Dom Luciano era um sábio de múltiplos saberes, idiomas, cultura geral e antropológica, mas se apresentava tal qual fosse um mendigo de Deus. Só podemos comparar sua vida à figura do bom samaritano expressa no evangelho de Lucas (Lc 10,20-37). Vendo Dom Luciano atuar em favor dos pobres, penso agora que, enfim, posso entender o porquê o samaritano deu ainda dois denários ao hospedeiro e, em seguida, ordena que o estalajadeiro cuidasse dele e quanto tivesse gasto a mais, na volta ele pagaria! Eu sempre pensava: Mas, por que voltou? Já fizera muito e ainda pagara tudo. Para onde teria ido depois? Por que deixa dois denários de caução? A serenidade de Dom Luciano me permite entender o não dito final da parábola que eu livremente interpreto: o samaritano (Dom Luciano) serenissimamente foi atrás dos assaltantes para conversar com eles, ver que não mais fizessem tal crime, que se convertessem e que soubessem que Deus os ama e que ele, samaritano-Luciano-sereno não poderia deixar a parábola acabar sem incluir plenamente na misericórdia de Deus aquele que fora o mais massacrado dos homens, o mais caído de todos, o que machucou o próprio irmão. Dom Luciano completa a parábola dando a volta completa na viagem. Vai aos porões da humanidade. Vai além da parábola para que nenhum personagem fique sem a luz de Deus. Os pobres eram para ele a “sereníssima majestade” de seu viver e de seu agir. Todos eles, culpados e inocentes.
Assim se exprime Dom Luciano: “Os pobres têm maiores possibilidades de converter o mundo, porque não fazem sua força consistir nem nas riquezas, nem na técnica, nem na beleza humana, nem sequer na reputação social, mas na pobreza. Quem é pequeno, quem é pobre sabe que, se fez algum bem, isto lhe vem de Deus, pois sozinho não seria capaz. Privando os outros da felicidade de descobrir que os valores são de Deus, podemos também ofuscar esses valores, porque, manipulando-os com nossas mãos, deixamos neles os vestígios da nossa pequenez e isto pode estragar sua beleza. Quando somos internamente livres, desapegados, este vestígio que deixamos habitualmente sobre as coisas não existe e distingue-se melhor o dom de si”. Dom Luciano era considerado “a serenidade em pessoa”.
Como alcançar a serenidade? Em tudo na vida é preciso exercitar-se e praticar com fidelidade e paciência. A virtude que necessitamos também exige ser praticada todo dia. É preciso treinar e aprimorar o segredo-semente que nos entregaram para frutificar em belas flores. Coragem e paciência serão necessárias. São sete os princípios de bem estar que nos farão sair desse momento de ódio a que fomos submetidos por grupos de manipulação da grande imprensa. Poderemos recuperar a saúde física e mental praticando-os. São eles: contato com a natureza; calma; não julgar; conexões; aceitação; desapego; confiança e metas.
O primeiro é simples e concreto: reserve tempo em sua agenda para passear sozinho, se possível em parques e áreas floridas, por pelo menos uma hora sem falar, ler, escutar música. Só contemplando e experimentando você e seus passos. Estar inteiro no passeio. E passear. Só isso.
O segundo exercício é suavemente aquietar-se ao fazer algo sem pensar no antes nem depois. Pode ser lavar a louça e cuidar de cada detalhe da limpeza. Ou fazer para você mesmo uma pequenina refeição e degustá-la com suavidade. Sem relógio e sem pressão. Se tiver uma planta cuide dela, regue-a, fale com ela. Converse suavemente com teus filhos e ouça-os mais do que lhes fale. Tome sua esposa em seu colo e coloque-a para ninar. Sem pressão nem pressa. Suavemente e sem medo algum.
O terceiro pilar ou princípio pode ser exercitado procurando não emitir julgamentos sobre você ou alguém durante toda uma manhã, depois um dia inteiro e semana. Se acontecer de não conseguir e acabar por julgar alguém coloque as sandálias dele em seus próprios pés, tal qual diz o ditado italiano: “não se pode julgar ninguém sem ter caminhado com seus sapatos por pelo menos quinze dias”. Se ainda assim não conseguir, troque de lugar e diga: isso que eu critico nele numa escala de O a 10 quanto existe em mim? Se eu digo: Fulano é vaidoso. Devo me questionar honestamente: Quão vaidoso sou eu?
O quarto passo é buscar compreender e aceitar que estamos todos conectados numa imensa rede de vida, processos e histórias. O que faço mexe com outros. O que outros fazem mexe comigo. Somos todos da mesma teia ou rede de complexidades, medos e amores. Madre Teresa de Calcutá sempre dizia que não é o que damos que importa, mas o quanto de amor vai dentro daquilo que damos. É o invisível que vale. É o divino que muda. É o amor que comove. Muitas vezes aquele que nos critica, ama mais do que aquele que nos elogia protocolarmente. Diz um sábio zen: “Se achar alguém que mostre a você seus próprios erros, acolha-o como se tivesse lhe mostrado tesouros escondidos e preste bastante atenção. Será melhor, não pior, para aqueles que atentam às palavras deste sábio”. E completa o mestre budista: “Se você encontra dificuldade em me dizer algo abertamente, fale mal de mim para alguém, por favor, para que eu possa conhecer ainda que indiretamente meus próprios erros”. Afinal, tudo o que dissermos sobre o pecado de alguém, certamente alguém já imputou a nós anteriormente, de forma correta ou mentirosa. E se disse o que é verdade, assumo. Falando inverdades, não falou de mim. Simples assim! Sem angústia nem raiva. Sem úlceras nem gastrite.
O quinto pilar é a aceitação. O maior desperdício da vida é querer impor coisas aos outros. Sempre resulta em fracasso total. É a tendência de acreditar que somente as próprias ideias e opiniões são corretas. Sempre resulta no desastroso: “se me amas, deves pensar como eu”. Faz lembrar aquele dito do monge Shantideva: “Se você tem um problema e pode resolvê-lo por que se preocupa? E se tem o problema e não pode resolver, então porque ainda se preocupa?” Aceitar-se primeiro, aceitar a vida e lutar para mudar, mudando-se é a chave de tudo. Quem aceita pensar de outra forma pode ver que a vida é feita de múltiplos ângulos. O inaceitável é aquilo que fira os valores. As opiniões e ideias todas podem ser claras, confusas, contraditórias, boas e más. Aceitar pessoas é ser humano. Criticar ideias é ser inteligente. arruinar pessoas e honras não é humano nem inteligente. Um pequeno exercício pode ajudar: marque num papel quantas vezes num dia você perdeu a calma e a serenidade. Marque a situação, horário, pessoas e motivos. Com calma poderá descobrir se a raiva veio da cabeça, do coração ou do estômago. Assim poderá aceitar a cura. A melhor família do mundo é a tua, mesmo que comam um pedaço de pão seco. Se houver amor e serenidade, seus filhos são o seu tesouro.
O sexto princípio é um dos mais difíceis e importantes. É o distanciamento ou desapego. Quanto mais inseguro é alguém, mais se apega e fica subordinado de pessoas, coisas e isso traz sofrimento para ela e para os outros. A ideia mais bonita seria sempre essa: “posso até viver sem você, mas prefiro estar com você”. Deixar as bugigangas para ficar com o essencial. Cultivar o essencial em si e nas relações com os que amamos. Um exercício excelente seria deixar o seu lugar de trabalho ou de família ou de Igreja onde você é indispensável por um dia ou por umas horas e fazer algo totalmente fora de seu padrão formal. E ao voltar ver como a vida seguiu seu curso sem criar vínculos pesados contigo ou por tua causa. Isso deve valer ainda mais para quem carrega fardos pesados do passado e não consegue superá-los. Pense que o mundo não começou contigo, mas saiba que ele não irá avante sem ti. Faça a experiência de acordar dizendo: hoje é o melhor dia da minha vida, pois assim o sinto e assim o farei, com a graça de Deus e minha esperança teimosa.
Enfim, o último pilar da serenidade é confiar e estabelecer metas positivas usando o hemisfério direito do nosso cérebro que é a sede das emoções, criatividade, cura e intuição. Ore, celebre, festeje, repare o quebrado, arrependa-se de erros e mentiras. O mais relevante é cultivar a gratidão das pessoas que estão ao teu redor. Agradeça aos atendentes, ascensoristas, telefonistas, companheiros de trabalho. Peça a Deus que te dê elegância e paz para exprimir palavras suaves. Mesmo quando criticar faça-o como uma mãe faz ao oferecer remédio ao filho doente. “Aquele que fecha os lábios passa por inteligente”. Falemos do que brote do fundo de nosso coração. Serenamente. Suavemente. Placidamente. Na paz! O mais, calemos.